.03 - mAriANa

2 0 1
                                    

Parou diante da porta branca. A placa ao lado direito com os escritos "CARA LÁ DE CIMA" a fazia sentir coisas que não experimentava há mais de um mês. O coração acelerado, as palmas das mãos frias e suadas, a respiração ofegante. Diferente de antes, entretanto, tais sintomas não eram um sinal de uma angústia latente e sim puros reflexos da ansiedade que era estar a um passo de realizar seu maior sonho. Deu três toques pausados na porta, como fora instruída a fazer e logo obteve a resposta.

— Entre, por favor! Seja bem-vinda! — disse a voz iluminada.

Abriu a porta. A luz da manhã invadia o cômodo todo branco criando uma visão quase utópica da figura ao centro da sala. Um homem pálido, de roupas igualmente brancas e cujos cabelos longos caiam sobre os ombros, repousando ao lado dá longa barba encrespada. Os olhos vívidos contraíram com o sorriso caloroso ao continuar:

— Bom dia, baixinha! Sente-se, por favor! Não seja tímida! Está em família aqui, você sabe não é? — a última frase fez seu coração saltar no peito, tornando inevitável que soltasse uma breve risada ao sentar-se diante dele.

— Obrigada! Só estou um pouco ansiosa e... muito feliz!

— Depois de um mês, quem diria hein? Haha! — piscou um olho para ela e logo folheou a pilha de papéis em sua mesa até encontrar o que desejava. — Bom... brincadeiras à parte, aqui estamos... Mariana!!! É um belo nome para uma bela jovem como você!

— É sim, eu acho... — levou uma mão à nuca e desviou o olhar.

— Bom, Mariana... Você teve uma trajetória distinta das dos demais baixinhos, não é?! Agora me diga, por que a escolha do nome? Não acha muito parecido com seu nome mundano?

— De forma alguma, senhor! — arregalou os olhos.

— Então me diga o porquê...

2005

— Maria Joana!
Ouviu-se um burburinho na sala de aula, aquele velho burburinho de todas as tardes.

— Presente... — a voz frágil e mal articulada que vinha de uma das carteiras ao fundo quase nunca era capaz de chegar aos ouvidos da professora. Ou será que ela fingia não ouvir, porque assim como os outros babacas, gostava de infernizar sua vida? De qualquer maneira duas coisas eram certas todos os dias: o grito daquela vaca e as risadas do bando de infelizes.

— Maria Joana? — O primeiro sempre acompanhado pelo segundo, como a carroça que acompanha um burro. — Silêncio, classe! Si-lên-cio! Como vou ouvir sua colega desse jeito? Maria Joana, você está aí?

— Sim, tia...

Havia apenas uma semana que a substituta assumiu a turma desde que tia Margarida entrou de licença, mas a sensação que tinha era a de que estava presa ali pela eternidade. Como se todas as risadas não bastassem para marcar sua vida, naquela tarde algo bem pior aconteceria. Aquele seria de fato um momento decisivo em sua jornada, o dia em que caiu no fundo do poço, mas também o dia em que recebeu o primeiro sinal de que seria salva.

Agindo exatamente como a vaca incompetente que mostrou ser, a substituta mais uma vez colocou os alunos para assistir a um DVD no último tempo de aula. Agindo exatamente como a vaca sem criatividade que era, colocou um outro DVD da Xuxa. Era uma sessão de tortura particular para a garota, que passava aqueles longos minutos inquieta em sua carteira. Dividia sua atenção entre as caretas sem sentido que a substituta fazia em frente ao notebook e os olhares maldosos daqueles pestinhas ao seu redor. Tudo se repetia como o combinado até o momento em que a silhueta do castelo surgiu contra o céu noturno no telão da sala de vídeo.

Até hoje caso a perguntassem não saberia responder o que havia de especial naquele clipe. A princípio foi o castelo e então a fuga da princesa recebendo o auxílio da lua. Logo em seguida a letra e a melodia a levaram para um estado de transe. Seu coração parecia derreter saindo de um longo inverno. Em algum lugar no fundo da alma, ela pôde enxergar os momentos em que rodava de mãos dadas com as outras crianças sem ter... medo... ou vergonha. Durante os curtos minutos daquela canção acabou esquecendo do mundo ao redor e finalmente conseguiu se apoiar no encosto da carteira. Sua efêmera paz foi quebrada ao soar do sinal indicando o fim do dia de aula.

Naquela infeliz tarde de setembro, porém, o sinal não marcou o início de um entardecer de alívios, mas o cair de uma noite sombria demais para qualquer um que estivesse em sua pele. Conforme andava apressada sentiu algo estranho. Os olhares eram mais cruéis, os semblantes mais risonhos e havia algo pesado em sua cabeça, algo grudando em seus braços e ombros a cada passo. Então uma garota há uns bons metros de distância gritou a frase que jamais esqueceria

— Ah lá, a Maria Joana! Ela tá com cabelo de cipó igual à mãe dela!

Uma histeria coletiva começou. Todas as pestes gritaram em uníssono palavras difíceis demais para engolir. Era um barulho alto demais, horrível demais, assustador demais. Ela correu. Não viu quando o garoto botou o pé  em sua frente. As mãos arderam ao baterem no chão. Não tinha tempo pra isso, então levantou-se e correu outra vez. Maria Joana entrou no banheiro e trancou-se lá. Correu até o espelho com lágrimas nos olhos. Diante de si mesma viu a imagem horripilante, o rosto vermelho pelos arranhões e os cabelos emaranhados em várias mexas confusas, cada uma delas cuidadosamente bagunçada e grudada com chiclete verde menta.

2022

— Mariana é... Ótimo! É excelente, na verdade. É parecido e diferente ao mesmo tempo porque, se minha história tivesse sido um pouquinho diferente, eu...

— Não precisaria deixar de ser você mesma. — ele completou seu raciocínio.

— Exatamente!

— Bom... Mariana! — sorriu para ela. — Meus parabéns! Você foi aprovada! — levantou-se da cadeira e abriu os braços

— E-eu?! — uma lágrima solitária ameaçou escorrer pelo rosto, mas foi impedida imediatamente pelo seu indicador esquerdo. — Tá falando sério?

— Sério como a crise moral da nossa sociedade — fechou a cara apenas para abri-la logo em seguida com um outro sorriso e chamá-la para perto com um gesto incentivando um abraço. — Pronta para ouvir as palavras?

— Nunca estive tão pronta!

Tudo o que viu foi ele estender as duas mãos sobre sua cabeça antes de fechar os olhos. Um instante de silêncio precedeu a oração que fez seu peito transbordar de amor e plenitude.

Taba naba naba norem

Tugi penai siri

Dinghy e naba we

Miko keimi

Sere naba we

Taba naba norem


Abriu os olhos outra vez. As mãos que estavam lá em cima agora estavam um pouco abaixo da altura dos olhos. Em uma delas o copo com o líquido vermelho, na outra o pequeno quadrado de papel. Ela abriu a boca lentamente. O dedo do mestre foi em sua direção até pousar gentilmente em sua língua, deixando sobre ela o papel. Para encerrar o rito, ela bebeu em três goles o líquido vermelho que desceu queimando sua garganta. Ela fechou a boca e novamente perdeu-se naquele belo sorriso.

— Mariana... eu me orgulho de você. E eu amo você! — a melodia calma que emanava daquelas palavras permitiu às lágrimas descerem sem pudor. — Eu vou deixar você descansar agora. Sua viagem começa assim que adormecer.

Sentou-se na maca ao lado da mesa com os raios de sol se quebrando como um caleidoscópio em sua visão. Repousou seu corpo e juntou as mãos em cima da barriga. Antes de fechar os olhos, porém, virou a cabeça para o lado e o chamou:

— Cara? — Ele estava prestes a cruzar a porta quando olhou para trás.

— Diga, baixinha!

— Você vai estar lá, né? Quando eu chegar do outro lado...

— Eu estarei lá, baixinha! Eu estou em todo lugar! — as palavras deram lugar ao último sorriso benevolente que ela viu antes de fechar os olhos.

MonStRuoCiDadE - OCASOOnde histórias criam vida. Descubra agora