.01 - peGaDA

21 3 4
                                    

Os resquícios de sol eram apenas uma fina camada de sangue no horizonte daquela tarde onde as sombras engoliam a periferia da monstruosa cidade. Pontos de luz desordenados surgiam ao cair da noite, transformando os morros em cupinzeiros bioluminiscentes. Em um desses ninhos, uma mulher caminhava pelo labirinto de concreto e postes de energia, buscando a saída para casa. Os pés arranhavam com a poeira acumulada a cada passo, o suor grudava a camiseta ao seu corpo, que por mais de uma hora permaneceu estático, petrificado e espremido entre outros corpos.

Ao final de uma viela, a luz amarela vinha da porta onde colocou a chave e girou a maçaneta. Ao entrar chutou para longe os chinelos, atirou a bolsa no sofá, e abriu a geladeira em busca de algo para matar a fome. Enquanto fazia a difícil escolha entre um ovo e um pedaço de salsicha para comer com o arroz de ontem, a voz aguda de seu sobrinho avisou:

— Olha, mamãe! É a tia Lene que tá na televisão!!!

Fechou a geladeira com o ovo na mão. O noticiário das 19h ainda passava quando chegou. O jornalista a pegou desprevenida, na passarela do Terminal Ocaso, a caminho da plataforma das linhas alimentadoras, quando o céu ainda mantinha um tom fosco de lilás. Seu nome apareceu logo após a pergunta do repórter:

— Você desistiu de pegar o BRT hoje?

— Desisti... Vou tentar pegar o ônibus, pra ver se eu ainda chego em casa não tão tarde... — a voz ecoou em sua cabeça. Não havia diferença entre seu olhar na televisão e na vida real. Eram olheiras profundas, olhos fixos, sobrancelhas levemente apertadas, como as de quem se nega a acreditar em tudo o que aconteceu.

— Por que a senhora desistiu?
— Não funciona! Eu fiquei aqui em pé uma hora na fila pra ir sentada... Esses ônibus demora uma eternidade, aí quando chega todo mundo quer ir embora logo, aí acontece isso que cês tão vendo aí...
— Só pro pessoal de casa entender, aconteceu um acidente no ônibus da linha em que a dona Darlene pega pra ir pra casa.
— Houve, sim. Houve o acidente... A menina foi pisoteada, entendeu?! Um negócio, sabe... desumano... um negócio assim... Uma monstruosidade... É isso aí que tem po pobre! Você sai de casa e não sabe se volta! É a treva!

— Agora entendi porque tu demorou tanto pra chegar hoje.  — Sua irmã respondeu, vindo da sala.

— Foi um inferno, cara! Eu num aguento mais, todo dia isso!

Na TV a imagem cortou para a repórter no estúdio do noticiário. Alguns instantes de silêncio abalaram o rosto inexpressivo da mulher, até que ela retomou a fala com um pesar em sua voz.

— Olha, é com muita indignação que acabamos de receber a notícia de que a vítima do acidente, dona Maria de Fátima Souza, de quarenta e cinco anos, que foi pisoteada nessa tarde em uma confusão no terminal do BRT, acaba de falecer. Ela foi prontamente socorrida e levada ao hospital São Judas Tadeu, mas não resistiu aos ferimentos que, segundo os médicos, "causaram diversas fraturas, incluindo um traumatismo craniano". É realmente lamentável, é um absurdo ter que dar essa notícia, mas infelizmente foi o que aconteceu. A consequência desastrosa de um comportamento selvagem da própria população, que é alimentado e reforçado todos os dias pela precariedade do nosso sistema de transporte público.

— Tu viu isso, Lene? Jesus, tem misericórdia!!! — levou a mão à boca.

A pergunta da irmã afundou no abismo que se abriu em sua mente. Ela também caiu lá, onde se deparou com a verdadeira escuridão do que de fato ocorreu. A fila estava muito mais cheia que de costume. Estava apenas a alguns metros da porta do veículo, distância que não eram suficiente para conseguir uma viagem tranquila quando dezenas de pessoas estavam a sua volta para disputar um assento. Os pés firmaram no chão ao ver o articulado se aproximar. Todos estavam apostos. Nas frações de segundos antes do veículo estacionar, todos já se amontoavam empurrando as pessoas da frente em direção ao abismo. Era uma guerra diária, que Darlene geralmente vencia e não gostava de perder. Ela avançou. A gritaria avassaladora, um amontoado caótico de xingamentos e sons indescritíveis. Centenas de corpos tornando-se uma massa bestial. Darlene forçou seu corpo em direção a porta e algumas pessoas tropeçaram ameaçando cair. Ela tropeçou e um grito veio lá de baixo. Por um minuto enxergou sua morte. Segurou-se em um ferro e tirou o pé da superfície irregular onde havia pisado. Sentou-se num banco a sua frente, com o dedão de seu pé latejando de dor, ao som de gritos desesperados e pedidos de socorro. A gritaria tornou-se ainda mais desesperada, e as pessoas lá foram batiam com as palmas das mãos nas janelas do ônibus. Berros aterrorizados diziam que uma mulher caiu no vão entre a plataforma e o veículo.

— Lene? — um estalar de dedos soou diante de seus olhos. — Tá viva, desgraça? — sua irmã a encarava.

— Tia Lene, seu pé tá todo sujo. — a criança afirmou, olhando para baixo. Darlene acampanhou seu olhar. O pé direito sujo de sangue pisado, sua unha parcialmente arrancada e a dor pulsante entrou em cena outra vez. — Machucou?

— Machuquei... — a palavra ecoou no vazio de seu interior e saiu em tom baixo pela boca.

MonStRuoCiDadE - OCASOOnde histórias criam vida. Descubra agora