.04 - o viRA-lATa

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Silvio deu seta à direita antes de entrar na estrada das correntes. Durante muito tempo fora um ótimo lugar para morar: cercado pela natureza, limpo, silencioso e com poucos vizinhos. Ao longo dos anos tais atributos esvaíram-se até aquela noite de sexta, quando notou que restou-lhe apenas a natureza: latas de lixo reviradas ao longo de toda a via sinuosa, muitos carros estacionados e um burburinho crescente conforme aproximava-se de casa. Diminuiu a velocidade até parar em frente à garagem.

Uma quantidade atípica de pessoas caminhavam até a rua particular de acesso à residência de seu vizinho mais próximo. Os visitantes indesejados guiaram seu olhar estrada acima, no entanto alguma coisa cativou sua atenção com mais força do que os trajes exóticos. No alto da ladeira, próximo à curva de acesso a uma terceira casa, havia uma silhueta de grande porte sob a luz purulenta do poste. Concentrou-se por dois segundos e notou o que parecia ser um animal revirando uma lata de lixo. A princípio pensou tratar-se de um cachorro de rua, até que encarando-o por mais três segundos a ficha caiu: era grande demais para ser um cão.

— SIMBORA DOUTÔ! — Virou assustado após os três tapas na lataria do veículo. – SIMBORA CURTIR ESSE SEXTOU, SEU SILVIO!

Ao lado da janela do motorista, o rapaz aguardava a resposta com um sorriso no rosto. O semblante levemente alterado — provavelmente pelo consumo de álcool ou sabe Deus o que mais — combinava com a fantasia de zumbi, que por sua vez combinava com a personalidade desajustada e acéfala de seu vizinho. Suas festas aconteciam em intervalos de tempo cada vez menores. Era previsível o crescente mal estar em que  aquilo se tornaria, mas jamais imaginou que receberia pessoalmente um convite  para participar da baderna. Abaixou o vidro para facilitar a comunicação.

— Que lisonja, Rodrigo! Certamente eu me juntarei a você e seus... colegas... nesse sextou, mas em outra oportunidade. – Subiu o vidro e acionou o portão da garagem.

Aquela seria uma noite longa. Tirou os sapatos e os deixou no tapete em frente à porta antes de entrar. Passeou pelos cômodos a meia luz até chegar no banheiro. Estava cansado e não se importou em deixar as roupas jogadas pelo chão enquanto entrava na banheira. Degustou uma taça de vinho enquanto a espuma acariciava sua pele. A bebida encorpada adstringiu sua língua, porém foi inútil para amenizar os ruídos de tremor das janelas causados pela música alta.

Embrulhou-se em um pijama confortável para tentar manter a leveza do pós banho. De fato o relaxamento fora alcançado, pois não notou que as horas passaram rápido demais. A sonolência começava a dar os primeiros sinais. Era a hora de ajudá-la a fazer seu caminho até uma boa noite de sono. Deitou-se e puxou o livro fino que estava sobre o criado mudo.

"Um leve tilintar atrás de mim fez que eu virasse a cabeça. Seis homens negros subiam a trilha em fila. Todos caminhavam eretos e devagar, enquanto equilibravam sobre suas cabeças pequenos cestos preenchidos com terra. Um som metálico marcava o tempo de seus passos e panos pretos esfarrapados enrolados em suas pélvis e lombares balançavam ao esmo como se fossem caudas. Era possível ver cada costela, as juntas de seus membros eram como nós em uma corda. Cada um tinha um grilhão de ferro em torno do pescoço e todos estavam unidos por uma corrente cujos elos pendiam entre eles, tilintando ritmicamente."

***


Abriu os olhos lentamente. As janelas do quarto pareciam dançar ao som do grave, como se ameaçassem romper a qualquer momento. Fechou o livro que repousava aberto sobre seu peito e o devolveu para o criado mudo. A batida, meio frenética e meio psicodélica, não era de todo desconhecida. Esfregou os olhos para espantar o resíduo de sono que ainda havia e retomar a consciência.

— Só as cachorras! (Uh, uh, uh, uh, uh)

— As preparadas! (Uh, uh, uh, uh, uh)

Lá fora as pessoas gritavam as palavras sem sentido. Segundo a tela de bloqueio do celular, já eram 2h45min. Desbloqueou o aparelho e digitou os três números com ardor em seu rosto. Caminhou até a varanda, de onde tinha ampla visão da estrada.

— Polícia militar, emergência.
— Escute, filha, preciso de uma viatura aqui na estrada das correntes, número 66.
— O que houve, senhor?
— Tem um filho da... uma festa. A essa hora! O som está altíssimo e... — do outro lado da rua, policiais entravam na viatura após guardar o bolo de notas em seus bolsos.
— Senhor? Alô? Pode repetir a informação, por favor? — desligou a ligação.

Ouviu um estalo seco lá embaixo. O olhar desceu lentamente para ver o que havia dentro de seu próprio quintal. Sua visão estremeceu ao encontrar-se com o medonho responsável pela bagunça na vizinhança. Agora estando tão perto sua indentidade poderia ser melhor compreendida, mas o que aconteceu foi o oposto: uma figura tão curiosa, quanto indescritível e assustadora. A silhueta esguia e encurvada sobre a lata de lixo criava a ilusão de que aquele seria um quadrúpede qualquer. Ao mesmo tempo, seu corpo sem pelos e de traços delicados sugeriam tratar-se de um animal incomum. A confirmação veio quando a coisa girou o pescoço em cento e oitenta graus e encarou Silvio com seu rosto sem olhos ou boca: apenas dois enormes olhos humanos. Silvio recuou imediatamente. Alarmado, pegou o celular e discou novamente.

— Polícia militar, emergência.
— Preciso que venham à estrada das correntes número 66 agora! Ouviu? Agora!
— Senhor, esta é a terceira solicitação para o mesmo endereço em menos de uma hora. Uma viatura já foi enviada ao local.
— Escuta, você não está entendendo! Há uma festa de halloween aqui do lado e agora um sujeito esquisito invadiu minha casa e está revirando meu lixo! Dessa vez eles passaram por cima de qualquer limite aceitável! Isso é inadmissível!

Por que você não cala essa boca, Silvio?


Uma voz grave ecoou dentro do quarto.
— Quem está aí? — gritou em resposta. — Que porra você quer?

Quem é você pra falar em limites... Em ser razoável... Hahaha


O parto do quarto abriu sozinha. Silvio andou para trás em direção ao guarda-roupa. Avistou um vulto enorme correndo pelas paredes como uma lagartixa. Tirou a pistola da gaveta.

Olha só pra você... Acha que uma arma de fogo pode te proteger... Não pode se proteger de si mesmo, Silvio. Não pode fugir da sua própria escuridão...

Com a arma em mãos, estava pronto para atirar. Olhos percorreram o cômodo rapidamente. Uma pena que eles não viram quando os dentes afiados alcançaram seu pescoço. O estrondo de correntes quebrando. A forte pressão da mordida e do tombo no chão. Abriu os olhos. Estava tonto, mas vivo. O quarto girava ao seu redor, mas a arma estava bem ali no chão em sua frente.

— Bom... acho que não vão se importar se eu aceitar o convite. Mudei de ideia...

Pôs a arma na cintura, desceu as escadas, abriu a porta, atravessou a rua. A música ainda estava tão alta quanto as pessoas ali.

♪ Ela...

Ela me falou que quer rave, bebiba, quer bala

Pra ficar na brisa, na brisa ♪


— Porra Doutô!!!! Você veio!! — as palavras embaralhadas vieram acompanhadas de um abraço. — S-sua fantasia tá... tá do caralho, viu!! Hahahaha olha isso, maluco!

Rodrigo jamais imaginou que veria Silvio fantasiado. Jamais imaginou que veria Silvio maquiado de caveira e com sangue falso por todo o pescoço. Jamais imaginou que veria Silvio apontar uma arma. E depois disso, Rodrigo jamais imaginou outra vez.

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