São 9h45min no ponto quando entro na loja; hoje o pai tá com sorte! A bexiga quase explodindo, mas ainda não sóbrio o suficiente para correr, então vou ao banheiro sem pressa. Passo ao menos um minuto com a cabeça encostada na parede acima do mictório. Sim, senhores: isso é mijo para caralho! Não mijava tanto assim há um bom tempo. Vou lavar as mãos. Olho para o espelho e me dou conta do meu estado de merda. Cabeça latejando, com certeza a dor piorou quando cheguei nesse inferno. Ainda tem muito lápis de olho aqui, porra! Fábio vai falar pra caralho! E falando no diabo...
[31/10 8:05] Fabeta 👻👹: B dia, Marlon!
[31/10 8:06] Fabeta 👻👹: Consegue chegar uns 15min antes?
[31/10 8:06] Fabeta 👻👹: Temos visita do Wallace hoje, ele quer falar com toda a equipe da manhã
[31/10 8:06] Fabeta 👻👹: Aguardo resposta, abç...
[31/10 8:16] Fabeta 👻👹: ??
[31/10 8:45] Fabeta 👻👹: vou considerar isso como um não...
[31/10 8:46] Fabeta 👻👹: não que eu esperasse muito de vc rs
[31/10 9:45] Fabeta 👻👹: Olha só, quem chegou cedo hj rs
[31/10 9:45] Fabeta 👻👹: Vai pra entrada da loja, já tá todo mundo lá
[31/10 9:46] Fabeta 👻👹: Pra onde tá indo??
[31/10 9:46] Fabeta 👻👹: Eu sei que vc leu minhas mensagens
[31/10 9:47] Fabeta 👻👹: Marlon... 🤦 VAI PRA ENTRADA DA LOJA
[31/10 9:48] Fabeta 👻👹: Vou ter que ir aí te buscar???- Marlon? - fodeu! Olho pra ele e a cara que vejo não é nada boa. - Jesus Cristo! O que houve contigo? Vamos lá, só bate o ponto e depois a gente conversa. - fodeu demais!
Saímos juntos em direção ao ponto, na verdade eu saí e ele veio logo em seguida. Certeza que tá me julgando mentalmente pra cacete. Na verdade ele não é assim, tá quieto demais... Certeza que deu alguma merda muito feia lá fora.
Bato o ponto e saio. Sim, senhores, deu merda! Praticamente todos os móveis do mostruário sendo montados a essa com a loja quase aberta? Lá vem...
- Ah, aí está! Bom dia, senhores!
- Bom dia, Wallace! - O cumprimento enquanto Fábio foge para o mais longe possível de mim e dele.
- Um absurdo! Decepcionante! Quem vai querer comprar um móvel em um lugar assim? - o silêncio reinando. - Senhores... quero que me respondam quem vocês acham que disse isso.- ...Você? - Digo enquanto Fabeta me fuzila com o olhar.
- Um cliente, senhores! Essas palavras, sem uma vírgula a mais ou um ponto a menos, foram comentadas por um cliente no reclame aqui. O cliente fez questão de citar a loja, que no caso é esta. - mais silêncio idiota. - Agora quero que olhem para isto.
Wallace caminha em direção a uma das nossas escrivaninhas de atendimento. Ele chama a equipe para perto e aponta o dedo pra um buraco, provavelmente feito por um cupim.
- Alguém pode me dizer o que é isso?
- É um absurdo, senhor! - digo segurando a risada.
- Exato, Marlon! É um absurdo! Gostaria que refrescassem minha memória. O que nós vendemos?
- Sonhos... - Fábio diz com plena convicção de que está fodido.
- Sonhos! É isso que nós vendemos. Quando um pai de família vem até aqui comprar uma cama, um guarda-roupas e uma escrivaninha para seu filho, ele não vem atrás de móveis; ele vem comprar a porra da liberdade de foder sem ter uma criança no mesmo cômodo! Sonhos são sonhos. Sonhos não têm buracos de cupim, nem traças, nem nada disso!
- Pra conhecimento de todos, a equipe de controle de pragas já foi acionada e vêm à loja ainda essa semana... - Fábio se intromete, mas Wallace garante que ele não fale para um caralho.
- O que você precisa entender como gestor, Fábio... é que dedetizar não basta. Pragas vem e vão, falhas acontecem. O que eu espero de você daqui pra frente... de todos os senhores, na verdade... é que vendam o sonho. Se vocês venderem o sonho, coisas assim dificilmente se repetirão. Estamos alinhados?
- Alinhados! - todos respondem ao mesmo tempo, como se estivessem numa missa católica.Restam três minutos pra abertura da loja, tempo suficiente pra um gole de café. Quando eu era garoto não entendia essa fixação dos adultos pelo café. Hoje eu vejo que é porque ele traduz o nosso dia a dia: amargo e obscuro. Que delícia! Dou um gole e só. Sempre é o suficiente e sempre depois do gole é quando o pau começa a torar. Hoje não seria diferente...
- Marlon! - Wallace chega com aquele sorriso de diabão capitalista que só ele tem.
- Beleza, chefia? - jogo o copo no lixo, mas ele cai pra fora. Ele se abaixa e cata pra mim.
- Pode vir comigo? Preciso te mostrar uma coisa antes que comece seu dia - agora fodeu de verdade!Ele caminha e eu vou logo atrás. Entramos no restrito. Ele segue pelo corredor até parar em frente à sala de ar-condicionado. Nem fodendo que ele vai me levar ali pra dentro! O que esse maluco quer? Me comer?
Ele abre a porta e manda eu entrar. Essa porra parece o corredor, só que no mundo invertido, muito mais estreito, muito mais escuro. Um vento marolento vindo de todos os lados e o cheiro de mofo dando soco no nariz. De repente o barulho: a porta fechou, tudo um breu. Me diz que esse arrombado não fez isso...
- Vem comigo! - Ele brota na minha frente ligando a lanterna do celular que ilumina seu rosto de baixo pra cima. Aquele narigão, aqueles olhos saltados, a boca fina e sem cor.A cada passo fica pior. A corrente de ar literalmente faz parecer que o capeta está suspirando no meu cangote. Minha rinite sendo atacada de mil e uma maneiras diferentes. Tudo aqui é sufocante demais, como se fosse Jonas dando um rolê dentro da baleia. Parece que a qualquer momento vou tropeçar no cadáver do seu último lanchinho. Então chegamos numa parte onde tudo fica muito pior. As paredes ao meu redor mal têm reboco e estão parcialmente deterioradas. Grandes veios escuros e granulados, vindo de todas as direções com avenidas que se encontrariam num único cruzamento. Wallace parou em frente a esse cruzamento, que estava coberto com uma pedra de tamanho médio.
- Acha que consegue tirar do lugar pra mim?
- Posso tentar, chefia. Mas o que é essa parada aí?
- Vá em frente e verá.Pego o troço com as duas mãos. Bagulho pesado! Faço força mais ela nem se mexe.
- Acho que não vou conseguir assim, chefia.
- Faça como puder. Só tire daí.Beleza... Vou para o lado do pedregulho e apoio as duas mãos o empurrando. Não demora muito pro troço cair no chão e desmanchar feito merda. Para minha maldita surpresa eu vejo o que fazia a pedra ter todo aquele peso. Infinitos tipos de insetos em grandes quantidades saem de lá. Alguns voam na minha cara. Outros rastejam para fora, ou em minha direção, ou em cima da minha mão. Porra!!! Que merda é essa na minha mão? Tá ardendo! Porra!!!!
- Tira isso de mim! Tira isso!!!
Ele pega um borrifador e um isqueiro. Antes que eu peça pra ele parar, uma bola de fogo explode na direção dos bichos. O troço na minha mão fica agitado. Começo a raspar a mão na parede e finalmente me livro.
- A essa altura deve estar se perguntando pra que isso tudo.
- Eu só quero sair daqui, chefia! Na moral, com todo respeito? Zero necessidade!
- Aprendi que na vida, situações ensinam melhor que palavras, Marlon. Espero que tenha sido uma experiência proveitosa.
- Qual foi, Wallace? Passa a visão! Que viagem é essa, cara? - Enquanto fala ele me puxa para fora dali, até que saímos e ele fecha a porta da sala como se fechasse um túmulo. O silêncio pairando sobre o alívio.- O que quero dizer, Marlon, é que pouco me importa o que tem aqui dentro... - ele aponta para a porta - desde que continue aqui dentro! - Ele encosta a mão no meu peito, depois esfrega o dedo imundo no meu olho e fica olhando mancha do resto de lápis. - Merda na sombra não faz mal a ninguém. Todo mundo guarda as suas. Mas a merda no sol, meu amigo, ela fede. E ninguém gosta... Posso contar com você pra manter a merda na sombra?
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MonStRuoCiDadE - OCASO
KorkuVocê é a sombra, que mora com as sombras às margens, que viaja com as sombras embaixo do chão. Sombras aglomeradas em filas mancham as ruas de escuridão. Sombras que chegam ao centro bem cedo, bem antes de anoitecer. Sombra vigiada e temida aonde qu...