— Use sua lembrança mais feliz — orientara a voz rouca do professor, pouco antes de seus olhos fecharem e o pensamento começar a vagar.
A mente da aprendiz voou e voou, passou por montanhas, rios, desertos, florestas e cidades. Revisitou cada estrada por onde jovens pés já caminharam, inspirou cada partícula de ar puro, que balança nos cabelos durante as trilhas enfrentadas nos finais de semana a fio, de baixo do sol forte, enquanto o via se pôr junto com as luzes das casas que se acendiam ao longe, do ponto mais alto da região.
Desceu às águas calmas e límpidas e seguiu seu curso entre as rochas, com os peixes saltando na superfície e Biguás mergulhando para pescar a refeição. Mais à frente, uma cachoeira que desagua numa piscina natural, onde as crianças e seus pais passavam as tardes de domingo para acampar na relva que circunda o pequeno paraíso, protegido da fumaça dos carros e do barulho causado pelo povoado, que se escondia há alguns quilômetros ao leste.
Voando um pouco mais, a paisagem começou a mudar, os tons de verde deram lugar ao amarelo ouro das areias quentes e cheias de vidas secretas. Cactos centenários floresciam pela primeira vez, sem ninguém para observar, répteis pré-históricos rastejavam para debaixo das rochas em busca de sombra e proteção; serpentes enterravam-se e aguardavam presas desavisadas, enquanto os grandes e resistentes dromedários carregavam ruidosos turistas com suas câmeras fotográficas ao longo das dunas.
Ao chegar à tumultuosa civilização ziguezagueando pelos prédios e desviando de inúmeros fios elétricos, pairou sobre a pequena mancha verde no coração da grande metrópole. Ali, bem abaixo do frondoso Flamboyant, com as flores vermelho alaranjadas caindo sobre aqueles cachos bagunçados, os olhos de uma jovem encontraram os de uma outra. O primeiro sorriso aliviado ao ver que a foto do aplicativo era verdadeira, que a preocupação de se encontrarem em um local aberto e público, apesar de correta, foi desnecessária, pelo menos naquele caso.
E, naquele dia, o primeiro de muitos que se seguiram, elas não trocaram apenas os números de telefone, mas a esperança de um amor tranquilo e seguro, desenvolvido através dos anos e consolidado na calmaria de uma casa com varanda, no subúrbio daquela pacata cidade que viram durante a segunda viagem de férias que fizeram juntas.
De volta à sala de aula, Beatriz respirou fundo, posicionou o braço em riste e bradou:
— Mwanga! — Mas nada além de fumaça branca, fraca e disforme, saiu da ponta de sua varinha.
— Argh! Por que não funciona? — Os dentes trincados em frustração.
— Está tudo bem, continue tentando. — Com um leve aperto em seu ombro, o professor seguiu em direção ao próximo aluno, que praticava levitação com uma cadeira aparentemente pesada demais para um iniciante.
Na maior e mais antiga escola de magia e feitiçaria do sul africano, jovens de todo o país se reuniam para aprender a controlar e aperfeiçoar seus dons e poderes. Fossem eles membros de nobres famílias e linhagens mágicas, ou apenas alguém agraciado aleatoriamente pelas divindades, todos eram acolhidos e ensinados igualmente. Visando que o maior número de seres mágicos tivesse acesso à uma educação de qualidade, aqueles com condições financeiras menores e/ou que não residissem na cidade, poderiam morar nas dependências da instituição enquanto estudavam.
Beatriz não se encaixava em nenhum desses pré-requisitos.
Vinda de uma família mágica quase tão antiga quanto a própria escola, estudar nas salas em que seus antepassados estudaram era seu sonho desde sempre e, mesmo perto de se formar, ainda era apaixonada por cada detalhe que compunha aquele lugar. Suas colunas cobertas de musgo, o cheiro de tempero vindo da cozinha, o calor da magia que emanava das paredes, o burburinho dos alunos. Aquela era sua verdadeira casa e ela a amava.
— Qual lembrança está usando? — Próxima de seu ouvido, uma voz angelical sussurrou, e o doce aroma do perfume cítrico logo preencheu seus pulmões e descompassou o coração.
— Uma que não é minha, de uma vida que não vivi. — Virou-se em direção à colega de classe, e as palavras pareceram saltar de sua boca com mais sinceridade do que pretendia.
— Eis aí o seu problema. — As notas divertidas em sua voz soaram como sorvete em dia quente de verão. — Posso te ajudar a estudar, se quiser. — Seu sorriso sempre presente, brilhava, e os olhos gentis, tão pretos quanto duas jabuticabas, não desviaram enquanto aguardavam a resposta de forma ansiosa.
Por demonstrar habilidades acima da média para sua turma, quando chegou ao sexto ano, Laís avançou e passou a frequentar a mesma série que Bia. Por conta disso, faziam algumas matérias juntas, e foi impossível não notar a garota, que, além de muito inteligente, também era muito bonita. Assim, considerando que o feitiço de luz no qual Beatriz trabalhava exigia lembranças genuinamente felizes, o que poderia deixá-la mais contente do que estudar com aquela por quem nutria, em segredo, um sentimento imenso de afeição e desejo?
— Eu adoraria! — disse depressa demais e logo sentiu as bochechas esquentarem diante do olhar satisfeito de Laís. — Na minha casa ou na sua?
— Depende de onde for me levar para jantar primeiro — respondeu piscando o olho esquerdo, o que deixou Beatriz ainda mais vermelha.
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Vidas paralelas
FantasyPara executar um feitiço de luz, Beatriz precisa utilizar memórias felizes, mas, ao invés de procurar as suas próprias, usa seus dons para ver as de outras pessoas, e por esse motivo, a magia não funciona. Depois de muito tentar e se frustrar, aceit...