Capítulo 4

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Ainda era relativamente cedo quando chegaram à casa de Beatriz.

Suas mãos voltaram a suar de um jeito irritante ao notar as luzes apagadas e um bilhete em cima do balcão da cozinha informando que seus pais saíram. Isso significava que elas ficariam sozinhas estudando no quarto, o que deixou Bia nervosa com a possibilidade de se aproximarem ainda mais. Sem saber direito como agir, pegou um pote de sorvete no freezer e duas colheres, depois conduziu Laís escada acima, até o cômodo que passara a manhã toda organizando para receber a garota.

A casa era grande e não fugia do padrão das casas dos bairros mais nobres da cidade. Como era a mais nova de cinco irmãos, Bia era a única que ainda morava com os pais, mas pretendia ir embora no ano seguinte, quando entrasse para a faculdade. Sua vida era boa e confortável ali, a mãe estava quase se aposentando como curandeira no hospital bruxo, e o pai, como arquiteto. Entretanto, sentia que era algo que precisava fazer: sair da sombra da antiga linhagem da família e trilhar seu próprio caminho.

— Então — depois de alguns minutos observando o quarto e os pertences de Bia, Laís quebrou o silêncio ao notar que a outra, sentada na beirada da cama enquanto comia o sorvete diretamente do pote, não o faria —, por onde quer começar?

— Não sei — disse  com a boca cheia. — Como se estuda para ter lembranças felizes?

— Primeiro, precisa me contar o porquê de estar usando lembranças de outras vidas e sobre outras pessoas.

— Não sei — repetiu dando de ombros.

— Afe, Bia — reclamou Laís, ao se sentar ao seu lado na cama —, você não sabe de nada?

— Hum... não sei?

— Ai, sério mesmo, Beatriz!? — Laís expirou, desanimada, e começou a se levantar, mas foi puxada pelo braço e sentou-se novamente.

— Não, não, não. Desculpa — pediu Bia, com cara de cachorrinho sem dono. — Por favor, não vai. É só que... — Respirou fundo e colocou o sorvete na mesinha de cabeceira — é mais fácil assim. Você sabe que a minha família tem essa coisa de conseguir acessar as memórias de outras vidas e realidades, né? Eu só preciso me concentrar um pouco e voilà, lembranças do que quiser, a hora que quiser, rápido e prático.

— Bia, se ficar revisitando essas vidas paralelas, vai esquecer de viver essa. Quais memórias suas você deixará para os seus descendentes? Pelo que você será lembrada? 

Beatriz não respondeu, no entanto pareceu pensativa ao desviar o olhar para o chão.

— Olha, sei que alguns dias são piores do que outros, mas enquanto você ficar no passado, seu presente passará e o seu futuro não vai acontecer. Aposto que se procurar nas suas próprias lembranças, encontrará muitas coisas felizes pra usar no feitiço.

— Belas palavras — disse Bia, com um sorriso fraco —, só que eu não tive, nem tenho, um grande amor para usar como memória feliz.

— Sabe... — Laís segurou, novamente, as mãos geladas da garota, e parecia procurar as palavras certas —, nem só de grandes amores é feita a felicidade. Na verdade, são dos pequenos momentos, das histórias que dividimos com nossos amigos, familiares e com nós mesmas. Se formos esperar essa coisa de "grande amor" para sermos felizes, é melhor esperarmos deitadas. E mais, qualquer relacionamento exige reciprocidade. É uma via de mão dupla: se quer que alguém te faça feliz, esteja pronta para fazê-la feliz também. E é aí que está o problema, como você fará alguém feliz se não consegue se fazer feliz? Faz sentido pra você?

Ao olhar do rosto da garota ao seu lado para as mãos entrelaçadas, percebeu que sim, fazia todo sentido.

Esse poder, esse dom passado de geração em geração dentro de sua família, era algo muito precioso, mas precisava saber usá-lo, pois poderia ser tanto uma benção quanto uma maldição. Com ele, era possível revisitar memórias desta e de outras vidas e realidades, com ou sem magia, como as garotas no parque, a preferida de Bia. Ela gostaria de viver algo como aquilo, a emoção de encontrar alguém que faça o coração disparar com o primeiro olhar, com quem possa compartilhar a vida. Aliás, esta vida, que estava negligenciando.

— Nunca pensei assim — admitiu, por fim, com um suspiro.

— Então, vamos lá — disse Laís, animada, segurando firme e apertando as mãos da garota —, vamos procurar suas memórias felizes!

Pelas duas horas seguintes, guiou Beatriz numa intensa meditação. Reviveu com ela os momentos mais simples, como a primeira vez em que fez uma caneta levitar na casa dos avós; até os mais memoráveis, como a apresentação no templo das bruxas da família, aos onze anos, onde recebeu, diretamente das mãos da anciã, sua varinha de baobá; bem como o primeiro dia de aula na escola de magia e feitiçaria, quando conheceu Gabriel e Taís, e soube que levaria aqueles dois consigo pelo resto da vida.

Foi mais fácil do que pensou que seria para encontrar lembranças felizes.

E junto dessas, vieram, também, outras, como a primeira vez em que andou de bicicleta sem as rodinhas, as visitas mensais com os pais e os irmãos ao parque de diversões da cidade vizinha; as festas do pijama, noites de cinema e passeios no shopping ao lado dos amigos; os dias de chuva em que se encolhia ao lado da janela da sala de estar com uma caneca de chá quentinho e um livro nas mãos, enquanto passava horas lendo sem se preocupar com nada além da história, que passava como um filme por seus olhos curiosos.

Todos aqueles acontecimentos que Bia vivia desmerecendo e esquecendo, na espera de algum grande evento que envolvesse uma declaração pública ou um beijo que fizesse o tempo parar.
Mas, apesar de todo o esforço, naquela noite, Bia não conseguiu produzir um mwanga satisfatório.

— Não se preocupe — disse Laís, após a terceira tentativa frustrada da garota —, você está cansada, gastou muita energia, não adianta continuar assim.

— É, acho que você tem razão — respondeu, desanimada, ao jogar a varinha na cama.

— Poxa, meu pai Geraldo já chegou — lamentou ao olhar para a pulseira dourada com uma pequena pedra roxa brilhando em seu pulso. — Enfeiticei alguns acessórios para mim e meus pais, assim podemos nos comunicar. Acho que por não serem mágicos, os dois adoram quando uso meus dons com eles — explicou em seguida, ao perceber a confusão no rosto de Bia.

Ela era uma agraciada, nascida numa família sem dons, mas destacava-se entre os outros alunos e todos sabiam que teria um futuro brilhante. Quando despertou suas habilidades, os pais da garota fizeram questão de mudar-se para perto da escola, a fim de garantir que tivesse a melhor educação possível.

— Caramba! Você é mesmo genial — admirou-se, e Laís riu em resposta.

— Tenho treino no horário da aula de segunda, mas te procuro quando acabar para saber como foi — explicou enquanto seguiam até a porta. — Obrigada pelo jantar, pratique mais um pouco durante o final de semana e vai dar tudo certo!

Beatriz pretendia responder, mas Laís a envolveu num abraço quente e demorado; e então depositou um beijo em sua bochecha, o que desnorteou a garota deixando um sorriso bobo em seu rosto enquanto acenava ao vê-la partir no carro do pai.

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