Em uma floresta tão densa e alta, onde a sensação de solidão compete com a frieza e ternura das horas de chuva no meu rosto. Estou aqui há muitos anos e não sei se já consegui escalar em alguma destas árvores. Quando Aquele pássaro vermelho sobrevoa todo o caminho do qual sou refém, sem ao menos olhar para baixo, sinto que nunca tentei bater minhas asas. Creio que não tenha tentado por conta dessa chuva gelada nesse tempo frio. Ou provavelmente por conta dessa noite escura. Sim, provavelmente deve ser isso. Se eu tivesse tentado antes, poderia voar como ele, talvez não conseguisse reluzir meu corpo aurirrubro da mesma maneira, mas com certeza conseguiria sair dessa enorme prisão verde.
Ás vezes gentis vaga-lumes iluminam meu caminho escuro na tentativa de ajudar a me encontrar nesse ambiente tão carrancudo e pesaroso, porém assim como todos os outros gentis seres que gentilmente tentaram me ajudar, logo o amor tomou conta de seus âmagos e, o desgosto e asco não tardou a abrolhar de seus pequenos corpos, me abandonando posteriormente.
Estou aqui há anos, porém não me lembro de onde estou. Não me lembro por onde caminhei e do porquê rasguei minha carne de tanto tentar escalar essas enormes árvores.
Sinto lentamente meus pés se unindo ao úmido e áspero chão, esse mesmo que pisoteei incansavelmente por tantas eras. Sinto também meu peito enrijecendo, o que me dá imediatamente uma enorme falta de ar assim que percebo que por mais desesperadamente que ofego, ele não se move mais um milímetro sequer, nada mais muda.
Um beijo caloroso entre minha respiração pesada e a chuva leve enquanto minha mente se esvai gradualmente. Como um espectador, vejo aqueles pequenos vaga-lumes me olharem agora com pena, e não mais consigo distinguir se o que me toca são suas pequeninas lágrimas de misericórdia, ou a mesma gélida chuva que sempre me acompanhou, por dentro e por fora.
Começo também a sentir o doce acalanto de minhas gigantes companheiras ao meu lado, elas que sempre me desprezaram e me impediram de seguir meu caminho por todo esse tempo, agora serão minha eterna companhia.
Hoje, hoje será o dia em que faremos a mais bela ceia. Alimentaremos a todos com a mais doce carne e o mais quente suco, que sonhei por todo esse tempo e sempre senti fome. Fome.
Todos, todos poderão se alimentar. Se alimentarão da minha carne, antes que ela apodreça. Todos se alimentarão, inclusive os vaga-lumes, que antes tristes, agora sorriem. Sendo a única exceção nesse banquete, eu mesmo. Que não poderei fazer nada além de assistir esse espetáculo antropofágico. Hoje, hoje é o dia em que morrerei, porém ninguém, ninguém perceberá pois no eterno movimento de suas bocas cheias, minha fresca carne descansará para sempre.
- 29/08/22
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Solilóquios
PoesíaPequeno emaranhado de textos e meditações. Arte da capa: Título: Christ with Crown of Thorns Artista: Khalil Gibran (1883-1931)