Reflexos na Água

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Uma névoa havia se erguido após a tempestade, e o vento continuava a soprar como se quisesse arrancar com dedos póstumos as roupas que o esqueleto trajava.
Relâmpagos ocasionais acendiam as nuvens feito o tremular de uma vela, as ondas quebravam de maneira raivosa contra a costa, e as correntes de ar carregavam salpicos gélidos de encontro a sua face. Dust retirou seus sapatos, embolando as meias e colocando-as dentro dos calçados, e os apoiou em uma rocha próxima. Voltou-se para a praia, inspirando profundamente, e afundou seus pés descalços na areia frígida, sentindo como seus dedos removiam a camada úmida e dura devido à chuva, e chegavam aos grãos finos logo abaixo.
O mar estava extremamente revolto, exatamente como o pescador se sentia; um turbilhão gelado que ascendia em espiral contra as rochas da ilha.
Dust caminhou pela faixa de areia, passando por um castelo de areia parcialmente demolido pela tempestade. Um breve sorriso lhe crispou a face quando a nostalgia fincou seus dentes em sua alma, sentia saudades de sentar no chão em uma tarde ensolarada e erigir monumentos de dióxido de silício, sequer um pensamento angustiado além de querer finalizar seu projeto antes que a maré subisse, ou outra criança decidisse tropeçar e destruir sua escultura devido à atenção dispersa. Melanie não era muito fã da areia que embolava seus pelos, porém costumava ajudar o jovem a caçar peixinhos e colocá-los no "fosso de crocodilos" que cavavam ao redor da estrutura.
Um pensamento lhe acometeu, e ele ficou de cócoras, tentando enxergar na parca luz se o castelo possuía um fosso. Um relâmpago cortou os céus e ele viu o reflexo da água, seguido pelo brilho de escamas. Havia um pequeno peixe cinza, não maior que sua falange distal, deitado no fundo do buraco, seus opérculos movendo-se com dificuldade.
- Pobrezinho. - Ciciou, afundando seus dedos na areia no fundo do fosso, e pegando o animal com as mãos em concha. - Há quanto tempo você está aí, amiguinho? - Questionou, erguendo-se. Assumindo um andar apressado, ele alcançou o mar e entrou na arrebentação, as ondas lhe lambendo os joelhos. Com cuidado, ele deixou que um pouco de água fresca se infiltrasse por seus dedos, e observou esperançoso.
A principio, nada ocorreu. Após repetir mais algumas vezes seu gesto, o peixinho foi respondendo, suas brânquias começaram a filtrar a água, agora, rica em oxigênio, e ele até tentou nadar um pouco, mesmo que ainda estivesse letárgico.
- Bem melhor, não é? - Indagou o pescador com um sorriso lhe iluminando a face abatida. - Essas crianças não sabem que seres vivos não são brinquedo? - Murmurou, quando mais novo, eles sempre devolviam os peixes ao oceano, nunca faziam qualquer coisa que os colocasse em sério risco. - Hora de ir. - Aconselhou, devolvendo gentilmente o animal a seu habitat. O peixinho disparou e desapareceu entre as ondas.
Foi nesse momento que ele se apercebeu do canto.
Uma melodia suave, parecia se esconder entre os sons noturnos da praia, porém ele conseguia distingui-lo. Ergueu os olhos para o penhasco que circundava o lado leste da praia e jurou ter visto uma figura de baixa estatura pulando de maneira descuidada pelas pedras. Não havia muitas crianças na ilha, antigamente constituíam praticamente um terço da população, agora não passavam de uma mísera quinzena naquela ilha de quase 500 habitantes. Então, ver uma criança brincando sobre rochas escorregadias a beira-mar em plena madrugada, não era exatamente algo que você conseguiria ignorar com facilidade.
- Ei! - Gritou, saindo da água e se aproximando a passos largos da formação rochosa. O canto pareceu parar instantaneamente. - Criança! Desça daí, você pode se machucar! - Entretanto, o pequeno - assustado por sua gritaria - fez exatamente o contrário do que havia lhe sido instruído, saiu correndo, pulando descuidadamente de pedra em pedra, para mais perto de onde as ondas trovejavam contra o penhasco. - Espera! Pare! - Berrou o pescador, escalando uma rocha próxima.
O penhasco formava uma semi elipse aguda, semelhante à letra "U", com rochas do tamanho de cabriolés se amontoando até chegarem à parte mais profunda da baia onde até um adulto teria dificuldade de nadar devido às correntes traiçoeiras que lhe despedaçariam contra as pedras incrustadas de algas e moluscos.
Dust seguiu a criança, chamando e alertando sobre o perigo ao qual ela estava se expondo, porém ela sequer lhe respondia, só continuava a correr em desespero para a borda das rochas, em direção ao mar. O pé descalço do pescador escorregou, e ele caiu de lado contra uma pedra próxima, fazendo um talho em seu casaco ao cair sobre uma formação afiada de ostras. Com um xingamento entredentes, ele se colocou ereto, e vasculhou a escuridão tentando enxergar para onde o pirralho havia ido, desejando que um relâmpago pudesse lhe fornecer alguma luz.
Como se os deuses tivessem lhe ouvido, um raio cortou os céus, seguido de um trovão ribombante. No topo de uma pedra alta, delineada pela explosão de luz, encontrava-se a figura da criança. Pela maneira como estava posicionada, ela parecia estar procurando alguma coisa por onde havia vindo. Dust subiu em uma rocha próxima, ofegante. O pequeno soltou algo semelhante a um guincho e fez com que a alma do esqueleto parasse em seu peito quando ele - horrorizado - assistiu a criança pular para o mar revolto por livre e espontânea vontade.
Com um grito de alarde, o pescador correu naquela direção e, sem pensar duas vezes, se atirou na água na intenção de resgatar o pequeno antes que ele virasse comida de peixe.
O líquido frio envolveu seu corpo, invadindo suas roupas e boca. Cuspindo, Dust ascendeu à superfície para ver se a criança não estava se debatendo em um possível afogamento. Não havia sinal dela. Preocupado, ele sorveu o máximo de oxigênio que pôde e afundou, lutando contra a corrente que tentava jogá-lo contra as rochas. Se fora d'agua estava escuro, imagine, então, o breu que fazia dentro.
Desesperado, ele nadou em direção ao fundo, na esperança de ver a figura de baixa estatura que tentava resgatar. Então, com sua visão periférica, viu-a. Com um gesto rápido, ele agarrou seu braço e começou a nadar para cima, puxando-a. Foi nesse momento que ele sentiu pancadas contra a lateral de seu torso, e olhou para a criança, que tentava se desvencilhar de seu toque. Ela era incrivelmente forte para seu tamanho, conseguindo atrapalhar o progresso de Dust, uma saia vermelha comprida lhe envolvia da cintura para baixo, e havia algo semelhante a um enfeite em sua cabeça, parecendo bromélias descoradas.
A água se iluminou quando outro raio explodiu na superfície, e o pescador soltou um grito mudo, quase perdendo o fôlego ao engasgar com o líquido que os circundava devido seu espanto.
O que achava ser uma saia cafona e vermelha era, na verdade, uma cauda de peixe. Os enfeites na cabeça eram barbatanas modificadas.
Então ele finalmente percebeu. Não estava segurando uma criança, não exatamente uma de sua espécie, mas, sim, um alevino. Um filhote de sereia.
O filhote abriu a boca e emitiu um barulho estranho, que até o esqueleto ficou surpreso pelo som ter se propagado pela água. Um guincho agudo de puro terror.
Duas figuras surgiram das sombras que o penhasco lançava no mar, e uma se lançou contra Dust com a força de uma locomotiva a vapor. O pescador soltou o pequeno, ao passo que foi empurrado contra as rochas, o impacto sendo suficiente para lhe privar de fôlego. Desnorteado, ele tentou nadar em direção à superfície, todavia, uma mão lhe agarrou o tornozelo e o puxou para baixo novamente. Debatendo-se, ele tentou lutar contra o que lhe segurava, e um par de braços fortes surgiu e lhe envolveu, imobilizando-o.
Sua visão estava ficando nublada, seu peito doía, implorando por oxigênio. Ele sempre ganhava as competições de mergulho quando mais jovem, porém estava a desafiar seus limites no dado momento.
O mar se iluminou devido ao céu tempestuoso, e uma versão adulta do alevino - porém com cauda sarapintada de branco e vermelho - surgiu em seu campo de visão. A criatura não parecia nem um pouco feliz.
Em um átimo de desespero, Dust conseguiu se desvencilhar do que lhe segurava, e bateu as pernas com força para chegar á superfície. Sua cabeça irrompeu da água em um arquejo alto, para logo ser submergida quando foi puxado para baixo outra vez.
Dust chutou o que seria o rosto de uma das criaturas, que lhe soltou. A outra, da cauda sarapintada, veio em sua direção com algo semelhante a uma lança feita de pedra ou coral. O pescador conseguiu desviar, e tentou dar uma cotovelada no peito de seu atacante. Todavia, seu antebraço roçou e ficou preso na carne de alguma maneira. Seu oponente guinchou em dor, sangue manchou a água.
O outro tritão se aproximou, enlaçando as costelas dele e iniciando um aperto que expulsou todo seu ar, a água prontamente invadiu suas vias respiratórias, e ele começou a se afogar. Seu cérebro esqueceu completamente que não estavam na superfície, e fez com que seu corpo sofresse espasmos, engolindo o líquido frio e salgado que lhe rodeava.
Foi nesse momento que Dust percebeu que estava em desvantagem, seu corpo cedeu, e sua visão escureceu.

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