AS DUAS FACES DAS PALAVRAS

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Certa vez Felipe, cansado da correria da cidade grande, resolveu pedir um afastamento por uma semana de seu serviço e foi acampar sozinho numa mata muito conhecida que ficava a menos de 10km de sua cidade. Como não era tão longe, levantou-se de manhã e levou consigo apenas o essencial, visto que o local onde ia permanecer era um rancho de um amigo, e lá já existia o necessário para se manter uma semana na mata.

No meio do caminho sentiu sede. Quando abriu a mochila, lembrou-se de que havia esquecido seu pote de água na pia da cozinha.

Como era um lugar muito freqüentado pelos turistas e amantes da natureza, havia vários pontos na mata contendo placas de madeiras com indicações escritas. Elas eram fixadas nos troncos das árvores para indicarem os lugares descobertos por outros aventureiros. Alguns deles até deixavam a sua assinatura abaixo da indicação. Essas trilhas conduziam os aventureiros para vários açudes com águas cristalinas, além de cachoeiras, lagos, pomares, atalhos ...

Caminhando numa dessas trilhas, Felipe deparou-se com uma placa que indicava em letras garrafais: "Açude com Água Cristalina e Geladíssima. É a mais pura água desta floresta".

Feliz da vida e morto de sede, Felipe seguiu pela trilha e logo avistou o tal açude. Era um pequeno córrego cheio de mato, ladeado de um lamaçal cinzento e que tinha um certo cheiro desagradável. Tamanha era a sede de Felipe que não procurou analisar com mais calma aquela água. Confiou plenamente nas palavras grafadas na placa que dizia ser um açude de água cristalina e gelada. Sem delongas, foi bebendo daquela água com o pé atolado no barro até a altura do tornozelo. Chegou a sentir um gosto estranho. Apesar de a água ser de um tom mais escuro, continuou tomando daquele açude com muita vontade e prazer.

Após saciar sua sede, retomou a caminhada, seguindo pelo outro trecho da trilha indicado por uma seta. Subiu um estreito caminho barrento com certa dificuldade. Quando chegou no alto do barranco do açude, avistou bem próximo um mangueirão; desses em que são criados muitos porcos.

Deparou-se com uma outra placa que dizia: "Seu tolo! Bebeu da água podre do chiqueiro de meus porcos. Saia já de minha propriedade, senão vou soltar-lhe meus leões!".

Só, então, Felipe percebeu que a água que desembocava naquele açude vinha de um pequeno córrego que passava dentro do tal chiqueiro, local em que os porcos banhavam, defecavam ...

Enfiou os dedos na goela e colocou para fora toda aquela água podre. Todavia, era tarde demais. Já tinha tomado dela e se contaminado.

Jurou nunca mais acreditar naquelas palavras grafadas nas placas que indicavam os caminhos, os atalhos no meio da mata e seguiu por uma outra trilha.

Mais adiante, deparou-se com outra placa que dizia: "Se você se contaminou com a água podre dos porcos, beba deste açude e estará protegido e curado de qualquer doença".

Felipe, enfurecido pelas palavras tê-lo enganado uma vez, pegou um torrão de terra e atirou na placa que ficou toda manchada. Com aquele ato impulsivo, Felipe deixou na placa sua marca de raiva, ira e desconfiança. Depois, seguiu adiante.

Caminhava cada vez mais lentamente. Já não sabia mais em que lugar se encontrava. Tinha se perdido pelas trilhas da floresta. De súbito, começou a sentir o corpo cada vez mais quente. Sua cabeça passou a doer. A dor foi aumentando, aumentando e, junto ao cansaço, Felipe veio a desmaiar perdido pela trilha.

Quando acordou, novamente se encontrava diante de uma outra placa com a seguinte inscrição: "Seu destino se encontra nas suas pequenas decisões. As palavras mentem, mas também dizem a verdade. Cabe só a você julgá-las".

Felipe, quase desfalecendo, ainda encontrou forças para se levantar. Desfez de sua carga, jogando sua mochila no chão. Respirou fundo e tomou uma grande decisão. Permitiu-lhe dar uma nova chance a si mesmo, voltando a acreditar na existência de palavras que mereciam sua confiança.

Se desanimasse e se entregasse à derrota, permanecendo  caído no chão, em breve morreria. Resolveu, então, retornar para aquele açude que afirmava ter a cura de todas as doenças. Todavia suas forças eram limitadas, o cansaço e a fraqueza não lhe permitiam caminhar sequer alguns passos. Mesmo assim, seguiu rastejando pelo caminho de volta, lentamente, como se fosse uma cobra sem destino no meio da selva.

Suas forças estavam no fim. Parou de rastejar e, quando estava preste a se entregar à própria morte, ergueu a cabeça para cima e avistou uma outra placa que se encontrava de frente para quem retornava; por isso, não a tinha visto quando passou pela primeira vez naquele local. Na placa estava escrito: "Parabéns por ter aprendido a julgar bem as palavras. Você acabou de ganhar uma nova vida. Coma da casca desta árvore e estará curado".

E, assim, fez Felipe. Reuniu suas últimas forças e arrancou uma casca da árvore. Comeu com fé, esperança e humildade. Passou a se sentir melhor. Suas forças voltaram, o cansaço sumiu, sua febre cessou, seu semblante ficou todo corado e revestido de um belo sorriso.

Felizes daqueles que sabem julgar cada palavra com ponderação, paciência, compreensão e o coração aberto. Só assim se poderá discernir o maquiavélico, do belo; o erro, do acerto; a mentira, da verdade. Acredite na força das palavras. Acima de tudo, primeiro acredite em você mesmo, desfazendo-se de suas armas, desse seu lixo interior.

É importante antes de julgar qualquer coisa, caminhar um pouco mais à frente para se ter uma visão ampla daquilo que está sendo falado a você. Fique atento aos indícios, às pistas, aos comportamentos. Não seja como o Felipe que mesmo sentindo um desagradável cheiro no ar, mesmo vendo a água um pouco turva, a bebeu sem antes caminhar um pouquinho mais à frente para constatar realmente a veracidade daquela pureza que se encontrava contextualizada na placa. As palavras mentem e também dizem a verdade. Basta somente a você descobrir se está ou não sendo enganado, agindo com cautela e seguindo até a fonte de toda verdade.

Lixo interior: são sentimentos reprimidos que geram atitudes egoístas, que afastam e amedrontam as pessoas que nos ladeiam e nos enclausuram na solidão gelada de uma vida cada vez mais monótona e vazia.

Farmacia da AlmaOnde histórias criam vida. Descubra agora