CAPÍTULO CINCO

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—Malessa—

Depois de passar horas dentro da banheira revirando cada momento dos últimos meses na minha cabeça, finalmente me senti realmente limpa.

     Ter sangue Feral seco na sua pele é tanto repugnante quanto difícil de tirar. Quando essa coisa seca de verdade, parece uma segunda camada. Uma casca dura. Uma segunda pele asquerosa. Mandei minhas roupas para a lavanderia lá em baixo, me perguntando se iriam conseguir tirar as manchas.

     Depois que passei e repassei tudo o que presenciei nas últimas semanas até agora, coloquei uma toalha em minha volta, pretendendo vestir menos couro do que o habitual. Calça e blusa moletom me salvavam em noites frias como esta. É a segunda melhor coisa que eu gosto de usar. A primeira, era minha roupa de couro feita sob medida exclusivamente para caçar.

     Nas últimas semanas vivi muitas coisas que eu realmente gostaria de esquecer. Nos primeiros dias, depois que saímos de Nêmesis, vimos o que o território de Gaïus tinha piorado bastante. Muita gente ainda vivendo fora de cidades, sempre se mudando em grupos e construindo Complexos não tão resistentes. O número de Selvagens aumentaram. Pessoas que matam apenas por diversão — se é que aquilo pode ser chamado de pessoas —, por isso ficamos longe o suficiente dos seus territórios para não sermos vistos.

     Também encontramos mercadores de armas, suprimentos e objetos tanto malignos quanto de boa sorte. Todos fazendo de tudo para sobreviver, para se manter, mesmo que na maioria das vezes não conseguiam voltar para suas casas. Para as suas famílias.

     Salvamos um mercador de alguns Selvagens quando estávamos indo para o Bosque Myntus, com o objetivo de encontrar matilhas soltas pelas pequenas aldeias de lá. Como agradecimento, eles nos deu alimentos e suprimentos para acampar como cobertor, lanternas e uma barraca de inverno.

     Coloquei outra toalha enrolada no cabelo lavado, e me olhei no espelho um pouco embaçado por causa do vapor quente. Dessa vez, voltei com menos hematomas, a não ser por um arranhãozinho aqui e ali. Os Selvagens e os Ferais que matamos ficaram bem piores.

     Observei como meu reflexo parecia mais abatido e cansado do que da última vez que vi um espelho. Meu cabelo tinha crescido bastante, até mesmo onde eu havia cortado as franjas laterais. Se eu não fosse feérica, as marcas das noites não dormidas com certeza dariam as caras, mas nada no meu rosto ia além de um leve incômodo nos olhos, como se fossem se fechar por conta própria à qualquer momento. Porém, minha pele nunca esteve tão pálida. O azul-acinzentado dos meus olhos estava como o mar banhado pela luz da lua mais prateada que já existiu.

     Não me encontrei com Zand na cozinha. Preferi tirar todos os resquícios das últimas semanas, e duvidava muito que ele ainda estivesse lá. Mas quando saí do banheiro, meus olhos foram direto para um prato de ensopado de carne e uma fatia de bolo de chocolate, que me esperavam na mesa ao lado da janela.

     Sorri ao ver a enorme quantidade de açúcar, e quase voei ao alcançar o pratinho que continha o bolo, não me importando em usar garfo. Peguei a fatia com a mão, fechei os olhos e gemi baixo, quando senti o gostinho adocicado e maravilhosamente gelado do chocolate na minha língua. Adorava bolo, ainda mais quando ele saia da geladeira.

     — Pelo visto, ainda é doente por chocolate. — uma voz feminina familiar soou pelo quarto, especificamente, da minha cama. Já sabia que ela estava lá. Ouvi ela entrar enquanto ainda estava no banho, mas decidi fazê-la esperar um pouquinho. Eu merecia relaxar por uns instantes. — Sorte sua que cheguei antes do seu irmão devorar o último pedaço.

     Com a boca cheia de bolo, virei o corpo para quem eu já sabia estar deitada relaxadamente na minha cama. Astéria. Folgada como um gato entre os travesseiros, sorriu ao me ver, provavelmente porque eu estava com os cantos da boca sujos de chocolate.

~Depois do AnoitecerOnde histórias criam vida. Descubra agora