Conto #3 - Santo

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De tudo — quase nada — que nós vivemos juntos, a memória mais vívida que eu tinha era de um dia em um restaurante na beira da praia, quando seus olhos cheios de uma malícia inocente encontraram os meus enquanto você arrumava os fios do seu cabelo acinzentado que o vento revoltou, apenas alguns dias depois de eu ter roubado seu primeiro beijo. Você tinha aquele ar dúbio de menina rebelde e inocente e eu fiquei fascinado, querendo te ganhar pra mim a cada dia que passava.

Você era uma personalidade fascinante. O jeito como seus dedos se encolheram quando eu te estendi o capacete pra escapar comigo pra aquele lugar mostraram que você sentia muito mais medo dos seus sentimentos do que dizia e no fundo você tava certa. Cê não quis acreditar que eu era o que todo mundo falava. Sabia que eu era o tipo que jurava amor eterno mas no fundo não prestava, só não queria admitir isso pra si mesma. E eu estava adorando aquilo. Adorava cada quarta feira cinza, cada fugida pra praia, e mesmo que eu não fosse lá um cara muito religioso, adorava te beijar depois das missas, escondido da sua vózinha que você tanto amava e que tanto me odiava. As mulheres da sua família tinham uma coisa comigo, uma relação de amor e ódio porque elas — e você também — sabiam exatamente quem eu era e queriam se afastar — e te afastar — mas queriam mais ainda se render pro meu encanto jovem e cafajeste.

E era divertido. Eu não podia dizer que não gostava de fazer parte daquilo. Não podia dizer que não gostava de comer os bolos de laranja e o café que a Dona Amália fazia depois de um tempo que eu passei a frequentar sua casa porque sabia que era o meu favorito, nem que não gostava de ouvir a falsa ira na voz dela toda vez que a gente ia aos amassos pro teu quarto. Ainda me lembrava da voz gentil e firme cochichando um "Jovens, tsc tsc tsc" toda vez que ela passava pela porta fechada.

E aquele quarto, ah, aquele quarto. Eu também adorava teu quarto pequeno com cheiro de café e madeira, tua cama de solteiro com lençóis sempre revirados onde a gente quase nunca fazia alguma coisa. Gostava quando minha mão entrava gelada por baixo das tuas camisetas ora largas ora justas, o sopro assustado que escapava era quase uma música pro meu ouvido, as vezes mel pra minha boca que voltava a te ocupar com mais um beijo sedento enquanto você perdia o ar. Droga, eu amava aquilo. Amava até quando você me afastava apressada quando ouvia barulho de porta, porque a mágica só acontecia na minha casa, nunca na sua. Ou quando ia me beijando, gentil, até o calor acalmar e a gente só ficar deitados naquele colchão, seu cabelo macio espalhado em cima do meu braço enquanto você desenhava formas no meu rosto e no meu corpo com a ponta dos seus dedos sempre frios.

Eu também amava e nunca me esqueceria da maneira como você me olhava: como se eu e minha jaqueta de couro surrada fossemos algum tipo de santo com seu manto sagrado. O jeito como apertava minha cintura e seu rosto delicado contra minhas costas enquanto eu acelerava a moto pelas estradas que nos colocavam mais perto do infinito do oceano todo fim de semana com seu cabelo escapando por baixo do capacete branco que eu mentia dizendo que comprei só pra você, mas que já tinha passado por outras cabeças assim como minha boca já tinha passado por outras bocas, meus dedos por outras cinturas e minhas promessas vazias por outros ouvidos que você jamais conheceria. Mas o amor era um sentimento tão bonito... Por que deveria ficar preso a uma pessoa só?

Sabe, talvez seja cruel dizer isso, mas era bonito de ver. Você acreditava nas minhas juras vazias todas as vezes que a gente se beijava. Se esforçava tanto pra manter a pose independente e desapegada, mas pouca coisa já te desmontava. Um aperto mais forte, um beijo mais intenso, até um olhar bem no fundo do teu olho te fazia suspirar. Eu não precisava saber muito a tua história pra saber que você fingia toda essa pose porque alguém já tinha partido teu coração antes. Talvez por isso todo mundo ao seu redor me detestava tanto. Eles sabiam que quando o verão terminasse, eu não ia sofrer com a despedida muito menos te pedir perdão. Eu só ia pegar minha mala e minha moto e ia embora.

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