O Jazigo Da Família

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Não é seguro dirigir assim: cabeça voada num trânsito cheio, pensamentos confusos, realidade e fantasmas dançando com tanta harmonia que não é possível dizer quem é quem neste baile maldito.

Desvia o olhar para o banco ao seu lado onde a urna repousa feito uma pessoa.

— Eu não acredito nisso — sussurra para si mesma e para no sinal vermelho — Isso é tudo? Isso é tudo o que restou de você? Uma vida, família e amigos, escola e adolescência e tudo resulta assim? Uma urna com as cinzas de uma vida inteira? Pelo amor de Deus onde você estava com a cabeça?! Por que você está fazendo isso?! Sua maluca filha da puta qual é o seu problema?!

Dá um grito vigoroso em decorrência do susto das buzinadas e dos carros ultrapassando e xingando.

— Que droga! Já estou indo.

Dá partida e segue para o cemitério municipal.

II

Segue por um corredor de túmulos bonitos, santuários para as memórias de uma vida inteira, santuários para ossos, santuário para a carne podre. E se você for pobre o que te espera? Um buraco para esconder seu corpo até não fede mais? E o que vem depois? Um buraco cheio de ossos onde você se mistura com os outros até perder o último traço de individualidade? Para onde vão as memórias desta vida? Quem lembrará que um dia você existiu? Quem lembrará que um dia estivemos aqui? Quem vai lembrar o que sentimos? E o pior: quem se importará?

Ju sacode a cabeça tentando exorcizar os pensamentos cruéis e mesmo assim eles continuam, continuam, continuam...

Para frente a um jazigo diferenciado, parece uma casinha com a porta da frente de vidro, no chão placas de bronze revelam as gavetas, os azulejos azul-claros criam a impressão que ali é um pedacinho do céu (ou era essa a ideia quando foi criado nos anos 90). Ju pega a chave do molho que esperava nunca usar e abre a porta. Seu coração bate mais forte ao ver as fotos da mãe e do pai, lado a lado como foi durante a vida. As pernas fraquejam, sente vontade de desmaiar, talvez essa casinha azul seja o único e verdadeiro lar que já teve em sua vida. Talvez seja aqui sua morada verdadeira, talvez nem deva sair. Senta no canto, esconde o rosto e chove, chove, chove.

— Por que vocês estão fazendo isso comigo? — grita: — POR QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO ISSO COMIGO?!

Ela queria fazer tanta coisa e tudo o que consegue é chorar. Perde-se na fantasia de que aquilo é sua única casa, fantasia morando ali, puxando um quartinho e dizendo: "Bom dia pai! Bom dia mãe! Bom dia irmã!" imagina apenas a luz do jazigo da família iluminado durante à noite enquanto mexe no computador.

— Mas que porra eu estou fazendo?! — diz em fim para si própria — O que está acontecendo comigo? — olha para os lados e só vê túmulos como resposta.

Levanta, coloca a urna da irmã ao lado da foto dos pais. Fecha as portas do Jazigo, tranca e caminha para o carro. Na solidão do cemitério seus pensamentos se libertam: Como esse lugar está vazio, tão grande e tão vazio, parece que quando as pessoas morrem todo mundo esquece... será um futuro tão ruim assim... simplesmente ser esquecido? Se esquecer que um dia já esteve vivo? Esquecer que um dia isso já foi importante?

Para repentinamente sentindo um calafrio e lá vem a lembrança da mãe dizendo: "Quando se tem um arrepio é que alguém no futuro está pisando no seu túmulo." Quem? Quem ousa pisar no meu túmulo? Olha em volta procurando não sabe o que e tem apenas um cemitério vazio como resposta. Juliana você está ficando louca!

Aperta os passos, o vazio e a calma do cemitério outrora trazia paz, agora torna em puro terror e por quê? Ela não sabe, apenas sente a sombra do perigo, sente algo ali, sente... alguém observando.

— Para! — diz para si mesma — Você está parecendo louca! Não há nada a temer!

Os passos voltam ao normal e ofegante até faz piada da situação: Quem te olhar assim vai achar que você está fugindo do túmulo, vai pota neguinho para correr, ainda bem que não tá de noite.

Ri, passa no banheiro. Bate nas bochechas para parecer mais corada. Abre a bolsa para retocar a maquiagem e se detêm ao vê o diário ali, não sabe quanto tempo levou mais pareceu uma eternidade olhando o diário quando escuta alguém sussurrando:

— Juliana, ele está olhando para você!

— Judite! — diz Ju virando e dando de cara com uma forte sombra por todo o banheiro — Judite? — e eis que nas sombras pesadas surge o brilho de uma esfera amarela semelhante a um olho.

III

— Isso não está acontecendo, isso não está acontecendo, isso não está acontecendo — repete para si mesma até se acalmar — É a emoção só pode, estou carregada por fortes emoções — respira fundo até voltar ao controle e assim que suas mãos param de tremer liga o carro e segue para o escritório.

O Homem De Dez Mil OlhosOnde histórias criam vida. Descubra agora