IX

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O detetive Arcos deixou o livro aberto cair no seu rosto e fechou os olhos quando as lembranças daquele dia o atormentaram. Deitado na sua cama ele tentava ler um livro de investigação qualquer depois da janta, mas sua cabeça sempre se distraia com quem ocupava o quarto ao lado. Deixou o ar sair pesadamente dos seus pulmões.

— O que você já tá suspirando, detetive? — uma voz conhecida perguntou da ponta da cama. Matteo primeiro assustou-se e levou a mão instintivamente para a escrivaninha, mas relaxou quando viu Gustav. — Ah, então é aí que você guarda a arma.

O policial franziu o cenho. Não era bom que os dois estivessem no mesmo quarto.

— Não se preocupe, detetive, — o jovem levantou-se parecendo ler seus pensamentos. — não vim tentar sua castidade imaginária. — correu os olhos pela prateleira do quarto. — Esse livro é meu. — reconheceu a mancha de café que uma antiga amiga da escola tinha derramado sobre a capa. Aquela infeliz. — O que isso tá fazendo aqui?

— Você me emprestou. — defendeu-se.

— Emprestei? — olhou o livro pensativo. Não lembrava disso. Mas tampouco podia se cobrar, provavelmente aquilo já fazia uns dois anos. — Me diga, Matteo, — pegou outro livro. Uma página estava rabiscada. "Foi o motorista... Navalha de Occam". Um meio sorriso surgiu nos lábios de Gustav. — por que quis ser policial?

O detetive franziu o cenho. Sentou-se e abaixou o livro na cabeceira da cama.

— Eu já te disse.

— Quero ouvir de novo. — Gustav sentou-se na cama também e cruzou as pernas sobre ela. Parecia entretido com a nova leitura.

O policial ponderou.

— Eu estava voltando de uma festa no colégio quando o carro na minha frente foi parado. — lembrava-se perfeitamente do dia ensolarado, ele e alguns amigos tinha exagerado e amanhecido no pub. — De repente várias viaturas apareceram e policiais com armas na mão. Era um sequestro. — coçou a barba olhando para o nada. — Eles nos tiraram do perímetro em segurança e conseguiram negociar com o sequestrador. Eu fiquei encantado. Parecia um filme. Era um pai de família com os filhos e a esposa. Com certeza ia matar eles se a polícia não interferisse. — franziu o cenho. — Eu lembro de pensar "ah, então assim são os heróis reais". O policial que negociou com o sequestrador foi seguro, rápido e eficiente.

— Meu pai. — Gustav acrescentou sem olhá-lo.

— Sim. — observou o jovem. — O Tenente Serbian era o melhor negociador da polícia na época dele.

— E olha onde isso o levou. Sete palmos abaixo da terra. — virou a página.

Matteo engoliu a seco.

— Ele morreu em serviço. É uma morte digna. — murmurou tentando convencer mais a si mesmo que o jovem.

— Não há dignidade em morrer, detetive. — retorquiu.

Matteo abaixou os olhos.

— O seu pai foi um homem incrível, Gustav. — disse honestamente. — Ele me ensinou a maior parte das coisas que eu sei.

— Hmmm. — o jovem fez pouco caso. — É por isso que não quer dormir comigo? Por que meu pai era seu mentor?

O policial engoliu a seco. "Não querer" era uma expressão muito forte. E era mentira. Era mais como se o oficial sentisse que não devesse. Ele coçou a nuca.

O jovem abaixou o livro na cama.

— Eu... — desviou os olhos. — eu acho que estaria traindo a confiança do Tenente. Ele me pediu pra ficar de olho em você, mas não assim.

Gustav deu de ombros, levantou-se e guardou o livro.

— Eu não sou uma criança, Matteo, — disse se aproximando. — e um dia você vai ter que aceitar que eu não preciso da permissão de ninguém pra transar. Muito menos de quem já morreu. — inclinou-se e depositou um beijo suave nos lábios do policial. — Boa noite, detetive. — e saiu.


[...]


— E lá estava eu. — continuou o Tenente Serbian. — Sem reforços, na toca deles. — dizia enquanto enxergava um copo. O oficial Arcos já ouvira aquela história várias vezes, mas seus olhos ainda estavam vidrados no velho e ele prestava atenção a cada palavra que ele dizia. — Quando eu vi Johan estacionando o carro. Na hora eu pensei "minhas preces foram ouvidas!", mas por alguma razão eu continuei de tocaia, observando. Johan saiu do carro e cumprimentou a dona da casa que fazia lavagem de dinheiro! Estávamos atrás da Senhora Foston há muito tempo e ele estava mancomunado com ela! — balançou a cabeça e Matteo nem estava mais prestando atenção na louca do jantar que tinha pra lavar. — Eu nem consegui acreditar! Fiz barulho e os dois se viraram pra onde eu estava, a dona da casa fez sinal para que seus capangas checassem. Veja, os quatro armados e eu sozinho. Eles já tinham me visto. Saí de onde eu estava, levantei as mãos e comecei andar lentamente. Ouvi um barulho se aproximando. E, você sabe, antes a delegacia era conhecido como Pomar da Ana, uma história antiga. — enxugou outra louça. — As viaturas se aproximavam, mas eu sabia que Johan não me daria uma chance de sobreviver. Ele levantou a arma e boom!, os dois que estavam com a Senhora Foston eram policiais disfarçados! — contou com a mesma empolgação da primeira vez. — Nós os rendemos e eu olhei bem nos olhos de Johan e disse...

— "Então você é a maçã podre". — Matteo disse ao mesmo tempo que Orlando, assim como Gustav que acabara de entrar na cozinha com a cara de poucos amigos.

— De novo essa história? — perguntou abrindo a geladeira e enfiando a cabeça lá dentro.

— Nunca perde a graça. — o Tenente Serbian contestou e ficou em silêncio um tempo, ouvindo. — É o meu telefone do escritório. — enxugou as mãos. — Você, — puxou o filho pelo colarinho, o jovem já estava deixando o recinto com uma laranja e uma banana nas mãos. — vá ajudar Matteo.

— Ah, não precisa, senhor. — o oficial disse, nervoso.

— Ele disse que não precisa. — Gustav repetiu com o rosto enfadonho.

— Agora, moleque. — e colocou o pano de enxugar pratos no ombro dele e saiu em direção ao escritório.

O jovem rolou os olhos, abaixou as frutas na mesa e se aproximou do outro num suspiro.

Ouviram a porta do escritório bater. O Tenente estava bem ocupado com esse caso ultimamente.

— Sabe que essa história é mentira, não é? — murmurou ajudando-o com a louça.

Matteo deu de ombros sem olhá-lo.

— Deve ter um fundo de verdade.

— Não necessariamente.

Mais um tempo em silêncio.

— Você não disse nada para o velho. — Gustav começou, passando o pano lentamente pela pirex utilizado. — Sinceramente, você saiu tão abalado do meu quarto que eu tinha certeza que confessaria para o primeiro padre que achasse.

As bochechas do oficial se esquentaram quando ele lembrou que foi exatamente isso o que ele fez. O padre Mizael ficara horrorizado.

— E-eu... — pigarreou. — eu achei melhor não. Até porque isso não vai se repetir.

Ouviu um riso zombeteiro.

— Ah, não? — o jovem provocou. — Você é um péssimo mentiroso, oficial.

— Não estou mentindo. — franziu o cenho e fechou a torneira.

— Ah, não? Então o que veio fazer aqui? — Gustav guardou a louça, depois jogou a toalha no balcão e se aproximou, sorria como uma criança dissimulada.

Matteo tentou evitar contato visual.

— O-o Tenente sempre me convida. Seria estranho se eu parasse de repente.

— Sei... — e continuou a olhá-lo malicioso.

— É v-verdade. — não sabia bem o porquê, mas sentia uma estranha necessidade de ficar se reafirmando.

Gustav parou onde estava, tentava conter o sorriso mas tinha que apertar bem os lábios para isso. Quando o oficial resolveu olhá-lo não viu malícia nas íris dele, talvez pela primeira vez, mas sim uma felicidade incontida. E ele era tão lindo com os olhos brilhantes e as bochechas coradas. O jovem virou a cabeça para o corredor como se procurasse algum barulho que indicasse que a ligação do Tenente acabara, mas o único som era dos veículos passando na rua. Gustav então voltou sua atenção para o policial, aproximou-se e deixou seu rosto bem próximo ao do outro. Matteo não conseguia tirar os olhos dele. Engoliu a seco.

— Boa noite, oficial. — soprou para o outro numa voz mais do que convidativa. Quando deu as costas para Matteo o policial não pôde se conter e o puxou delicadamente pelo cotovelo, e lá estava novamente cedendo aos encantos do jovem num beijo saudoso.

Matteo o afastou, olhou nos olhos dele e já sabia que não dava para voltar atrás. Dessa vez não pararia o beijo. Afundou-se em Gustav, deslizou suas mãos para as costas dele. Sentiu sua cabeça girar quase como se estivesse embriagado, quanto mais provava dos lábios macios dele e do seu sabor quente, mais sentia uma urgência crescente. Moveu as mãos brutalmente para o quadril dele e o levantou para que sentasse no balcão. A respiração de Gustav se fez ofegante quando se afastaram e o policial atacou seu pescoço. O jovem riu e afundou seus próprios dedos nos fios dele. Sentiu a barba rala roçando sua pele.

— Oficial, — chamou sua atenção e o impediu de tomar seus lábios. — eu ouvi a porta se abrir. — riu da cara de Matteo ao receber a informação, os olhos arregalados como uma criança pega no flagra. — E, de novo, boa noite, oficial. — beijou os lábios do policial mais uma vez e desceu do balcão, deixando-o sozinho com a respiração ofegante, cabelos desgrenhados, passos do Tenente no corredor e um volume bem visível nas calças. Esse garoto ainda o enlouqueceria.

o informanteOnde histórias criam vida. Descubra agora