Nós espiávamos aquele casarão do outro lado da rua, por trás da cerca de arame farpado da calçada, no pasto. Era desconfortável e escorregadio por ali, além daquela névoa peculiar, incomum e fria. Nanda se tremeu um pouco, e recostou-se em Luisa, que estava olhando atentamente o outro lado da rua, como uma águia que sonda sua presa.
O escuro e as estrelas da noite rapidamente ia tomando conta dos céus, e luzes passageiras ficaram menos frequentes, pois o horário de pico estava chegando ao fim. E eu novamente admito o meu medo perante a casa. Não queria olhar para ela, embora ela insistisse em querer me ver, em crescer sua sombra para minha posição pra bisbilhotar-me. Os calafrios de Fernanda eram climáticos, os meus eram psicológicos.
— Eu deveria estar estudando pro ENEM — murmurei.
— E ía perder toda a aventura? — indagou Fernanda a mim.
Fiz uma cara de bunda com isso. Eu deveria estar me concentrando em estudar pro vestibular, e até fazendo tentativas de me resolver com a Dani. Muitas coisas estavam boiando em minha vida como escombros de navios naufragados, e o eminente naufrágio era essa suposta casa — bem como o que deve ter dentro dela.
— Acho que podemos ir ver mais perto. Não parece ter nada ali dentro! — disse Luisa, enfim.
Eu neguei, amedrontado e repreensivo.
— Mas tem, garanto!
— Será que essa coisa, ou espírito — pessoa, corrigi-a, mas ela prosseguiu —, er, não pode ter saído dali?
— Se for um espírito com certeza não saiu - afirmou Nanda, cheia de si. — Está à espreita!... AIIII! QUE ISSO?
Ela gritou aos prantos, e acalmou-se ao ver que era apenas um pedaço de mato que eu passei no pescoço dela. Eu e Luisa rimos.
— Eis a sua assombração! — trocei dela, e ela retorquiu com um soco no meu ombro.
Infelizmente a piadinha deu coragem pra Luisa atravessar a rua. Fomos atrás depressa, enquanto ela se esgueirava ao redor dos muros da casa.
— Me da pezinho, Nanda, por favor — pediu Lu.
Nanda recuou brevemente mas acabou dando.
— Você não vai pular não, né? — perguntei.
— Calma, não. Quero ver a casa só.
Ao subir em sua apoio, ela se agarrou no muro e se ajeitou.
— Eca, quanta sujeira — disse ela, enquanto caía o pó preto de mofo e lodo do muro. — Mas vou ter que lavar as mãos depois...
Ela sacou o celular e começou a tirar foto do que estava para dentro dos muros. Era o corredor lateral da área externa da casa, mato, parede, janelas, teto... Ela até gravou um vídeo.
Enquanto isso, eu e Fernanda estávamos olhando desconfiados ao redor. Parecia uma espécie de invasão domiciliar, embora eu mesmo já tenha feito isso... Mesmo assim, eu estava doido pra puxar Lu de volta pra baixo e sairmos dali o mais rápido possível. Aquela parte da cidade à noite era bem mal iluminada, e era perigoso. Mas afinal, já estávamos fazendo algo perigoso!
De repente, ouvimos um baque!
— Luisa?! — gritamos eu e Nanda. Ela escorregou e caiu pra dentro da casa!
— Aiii, me ralei nesse muro! — reclamou Luisa, com dor.
— Me dá pezinho também, Nanda! — pedi, e ela anuiu.
Olhando por cima, vi Luisa se levantando lentamente, ofegante, enquanto passava suavemente as mãos pelos seus braços e pernas raladas. Observando com mais calma esse mesmo corredor que eu passei quando fiz minha visita, ele era povoado por arbustos e relva alta. Eram plantas pontudas e idosas, era como fogo-fátuo engolindo a casa por baixo. Dava pra ouvir o estridular de grilos e cigarras por ali. Uns morcegos chiavam pelo alto também.
— Tenta me dar a mão! Depressa!
— Eu to bem dolorida. O portão ali deve estar aberto, né? — Sugeriu ela, andando pra lá. Eu fiquei observando seu caminhar trôpego pelo meio do mato até o portão.
Não durou muito. Uma luz vermelha surpreendeu-nos com seu piscar, acompanhada por uma sirene familiar. Pulei de volta na hora, vendo que Nanda se assustou também.
— Vão encostando na parede agora — exclamou uma policial que saiu da viatura. Ela nem sacou a arma, só abriu o coldre e pousou a mão ali.
Claro, obedecemos. Eu e Nanda trocávamos olhares ansiosos e suados, temendo sermos presos.
— O que estão fazendo aqui vocês dois? Estão olhando o que aí dentro? — inquiriu ela, com autoridade.
— Nada. Era só uma brincadeira... — menti.
— Vocês são muito grandinhos pra isso. Desembucha.
— Senhora policial, te juro. É que nossa amiga caiu ali dentro... — respondi, me tremendo. Agora sim ela sacou a pistola, e apontou ao redor.
— Caiu como?! Cadê ela? — indagou-nos.
— Aí dentro! Não fizemos nada, senhora. Já estávamos querendo ir embora.
— Gente, o que houve? — gritou Luisa, que se calou rapidamente ao chegar aonde estávamos e dar de cara com uma pistola apontada pra sua cara.
— Vai pra parede você também! — Luisa obedeceu. — Agora falem. Aonde tem droga escondida aqui?!
Puta merda, fodeu, pensei. Não havia qualquer explicação plausível pra estarmos ali. Ela acreditaria que estávamos ali por causa de uma suposta casa assombrada? Não há qualquer motivação forte pra nossa visita, que não seja a implacável curiosidade e insistência de Luisa com suas questões interiores. Talvez até fosse mais fácil dizer que estávamos querendo pegar droga mesmo, ou talvez fosse apenas mais fácil da policial acreditar, porém eu não poderia ter uma passagem pela polícia assim, tão novo, por um crime que nem cometi. Enquanto meu coração queria sair pela boca, ela revistou todo mundo e, obviamente, não encontrou nada. Demos sorrisos nervosos.
— Vocês estão com uniforme da federal, sabem que podem se encrencar feio, né? — alertou ela, mais calma — Um morador aqui perto ligou pra polícia prestando queixa de três jovens zanzando por aqui. Vocês não parecem nóias, mas que porra estão fazendo aqui essas horas? Moram aqui perto?
— Não moramos, não — respondi. — Só estávamos... Vendo a casa. Ela vai ser demolida, queríamos tirar foto pra registrar essa antiguidade aqui!... — inventei.
— E cadê essas fotos? Ficaram perambulando por isso? — inquiriu ela.
Luisa abriu as fotos no celular e as mostrou. A policial olhou e deu de ombros. Ficou nos encarando inexpressiva por um tempo. Acredito que nossas caras-de-pau a convenceu. Ela suspirou, aliviada.
— Se mandem, vão. Não voltem aqui essas horas, podem acontecer coisas bem ruins com vocês!...
VOCÊ ESTÁ LENDO
A Casa Velha.
HorrorUma velha e abandonada mansão de uma cidadezinha ganha atenção quando a prefeitura anuncia sua reforma. Os rumores que correm sobre seu abandono chamam atenção de uma jovem estudante da região, Luiza, e seu amigo Miguel, pois dizem que a casa está a...