4 - Hôgans

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  997 palavras.

   —O que diabos é um Hôgan? – Pergunto, em pânico.

   —Os Hôgans comem tudo... – O Sibilante explica. – São de um tipo diferente... Não perdoam nem mesmo os infectados.

   E eu achando que as coisas já estavam ruins o bastante...

   Kyle se levanta, sem nenhuma dificuldade. Ao contrário de mim, que fui consumido por cãibras dolorosas nas costelas e nas coxas, ao me contorcer pelo piso imundo onde estava deitado.

   —Droga... – Murmuro. – Péssima hora pra se estar sedentário!

   Kyle começou a me puxar pelo braço, exibindo a expressão mais séria e amedrontada que seu rosto risonho pudesse esboçar. Vê-lo daquele jeito me deixou com muito medo, até porque, se algo conseguia assustar um morto-vivo, com certeza faria picadinho de alguém vivinho, como eu.

   E então, do silêncio confortável da tarde, ouviu-se um berro capaz de estourar os tímpanos... 

   —Droga, acharam a gente! – Kyle dispara. – Vai pra trás do balcão... Se a coisa ficar feia, fuja... Ouviu?

   Assenti, acatando a sua ordem. Aquela versão de Kyle era bem mais durona e intimidadora. Muito diferente daquela que gargalhava, minutos atrás. Me assustava a forma com que eu mesmo desconhecia o mundo onde estava vivendo agora.

   A porta se abriu, com um estrondo...

   Por entre uma fresta, vi três figuras curvadas adentrar o espaço, tremendo mais do que infectados normais. Seus olhos eram completamente escuros e opacos, assim como o sangue, encharcando as roupas rasgadas, o rosto pálido e os dentes pontiagudos. Eles também pareciam ser mais inquietos do que o habitual, destruindo tudo por onde passavam, como se fazer isso os divertisse, de alguma forma.

   Atrás do balcão, sussurrei cada palavrão que eu conhecia, e acho até que inventei mais alguns...

   —Estão me procurando? – Kyle surge, repentinamente. – Otários!

   Os Hôgans urram de satisfação, se atirando ao encontro do Sibilante, como mísseis travados no alvo. Kyle se esquivou do primeiro, acertou a cabeça do segundo e, por muito pouco, não foi pego pelo terceiro. Dava para ver que o vírus deixava seus hospedeiros bem mais fortes, mais ágeis e consideravelmente bem mais violentos do que qualquer outro ser humano no planeta.

   Uma luta estranha e feroz foi travada entre as prateleiras. De um lado, tínhamos Kyle, um Sibilo negativo, com um senso de humor duvidoso, extremamente prestativo e dono de um excepcional gancho de direita. Do outro, temos três Sibilantes aprimorados, munidos de força, fome e agressividade.

   Se o tumulto perdurasse por muito tempo, pouco iria sobrar do estabelecimento...

   Kyle esmaga a cabeça de um Hôgan com a sola do tênis, enquanto era mordido pelos outros dois oponentes. Contemplei, apavorado, o sangue viscoso, escuro e grosso se espalhar por toda parte, fazendo meu estômago revirar sobre si mesmo. Não sei o porquê, mas, naquele momento, me senti o ser humano mais inútil da face da Terra.

   Quer dizer, eu não sabia lutar, atirar ou mesmo me defender direito... Alguém estava fazendo isso por mim.

   Durante toda a minha existência, eu apenas me escondi, como se eu fosse um tipo de tartaruga covarde, preferindo se espremer dentro do próprio casco, do que enfrentar o mundo real. E isso me envergonhava ainda mais agora...

   Kyle estava perdendo. Se eu não ajudasse, os Hôgans venceriam aquele combate...

   Já chega de se esconder!

   Inundado por uma recente onda de adrenalina, agarrei o extintor de incêndio, abandonado há poucos metros de distância de onde eu estava. E, sem ter certeza de mais nada, me levantei, num rompante raro, porém honroso, de pura coragem.

   —Aqui! Suas vadias podres! – Anuncio, atraindo a atenção de uma daquelas coisas direto para mim. 

   Girei o corpo, como fazia, nos tempos em que jogava basebol, acertando a cabeça do Hôgan com força o suficiente para arrebentar o crânio...

   —Isso! – Comemorei, enquanto assistia Kyle aniquilar o derradeiro inimigo restante.

   Assim que o corpo inerte desabou contra o chão, finalmente nos demos o luxo de suspirar aliviados. Kyle estava mais sujo e ensanguentado do que nunca. Mas, mesmo assim, ele ainda teve forças para me encarar e sorrir abertamente.

   —Podemos ir ao planetário agora? – Disse, casualmente.

   —É claro... – Ri, como eu poderia negar, não é mesmo?

***

   —Você trabalhava aqui antes? – pergunto, completamente surpreso. – Que incrível!

   Kyle assente, se aconchegando em uma poltrona.

   Estávamos no planetário agora. Encarando um ambiente amplo e claro, cheio de planetas, estrelas e asteróides pendurados no teto. Era um lugar muito bonito, exibindo cores e tons fluorescentes, para formar galáxias e nebulosas tão exuberantes quanto uma obra de arte.

   Queria ter vindo aqui mais vezes...

   —Você tem namorada? – Kyle pergunta, um pouco envergonhado.

   —Não... – Suspiro. – Leah, me largou dois anos atrás pra ficar com o meu melhor amigo... Meena, tenho pesadelos só de lembrar... Tommy, foi embora com meu moletom favorito, e isso eu nunca consegui perdoar!

   Kyle solta uma risada frouxa...

   —Você é exigente!

   —Não é isso... Só tenho o talento pra arruinar tudo de bom que acontece.

   Não acredito que estou desabafando com um zumbi!

   —Ou talvez tenha medo.

   —É... Talvez... Mas é você? – Decido desviar o foco da conversa, antes que eu comece a chorar como um bebê.

   —Tive menos sorte. – Kyle emudece.

   Silêncio...

   —Então está decidido! – faço uma pose teatral. – Vamos formar um duo musical, fazer shows pelo país, ficar muito famosos e ganhar rios de dinheiro!

   Caímos na gargalhada, até porque, acho que nenhum de nós dois sabe cantar, ou tocar qualquer instrumento.

   —Queria que isso fosse possível... – Kyle suspira, depois de recuperar o fôlego.

   —É, eu também...

   Voltamos a permanecer calados, fitando os anéis de Saturno e a trajetória de estrelas cadentes, cruzando o cosmos. Havia uma tranquilidade reconfortante na presença de Kyle, como se ele fosse o total oposto do que eu era. Todos os relacionamentos e amizades que eu cultivei antes, eram sempre turbulentas e difíceis, mas alí, encolhido sobre um pufe verde-limão encardido, senti que a vida não era tão neurótica como eu sempre achei que fosse.

   —Vou levar você para River Valley. – Kyle diz, subitamente.

   E lá se vai o meu momento de paz e sossego!

Comer Cérebros Não É Legal Onde histórias criam vida. Descubra agora