1 - O ermitão moderno

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   993 palavras.

   Se todas as pessoas tivessem a chance que tive para me redimir, penso que poucos estariam sofrendo como estou agora. Talvez eu mereça nunca encontrar alguém para amar. Não posso fugir e nem me esconder. Aliás, não tenho para onde fugir e nem... Nem onde me esconder.

   Não depois que o Sibilo surgiu...

   Eu não sei dizer o que aconteceu exatamente, só sei que a doença veio do espaço. Sério mesmo, do espaço... A porra de um vírus alienígena. Dá pra acreditar?

   O resto da história aposto que vocês já sabem. Zilhões de infectados, hospitais lotados, governos pirando na batatinha, crise humanitária, mortes em massa, revoltas, teorias da conspiração... Pânico, pânico, pânico!

   Enfim... Todo mundo virou zumbi.

   Eu estava em casa no dia do surto, lamentando minha vida patética e sem emoção, quando vi o vizinho comendo as tripas da esposa dele. Fala sério, se eu não estivesse tão assustado, juro que seria capaz de vomitar as sobras do café da manhã do mês passado. E me pergunto até hoje o porquê de eu ter saído do conforto do meu quarto naquele dia, quando eu deveria apenas ter chamado a polícia.

   Resultado... O maldito velho pulou sobre mim e só não abocanhou a minha cara por causa do meu taco de baseball, que eu estava carregando, por segurança. Cara, eu tinha pago uma fortuna naquela coisa. Agora o que sobrou dela foi só um monte de madeira triturada inútil...

  Desde então, eu venho tentando ficar bem longe do time dos "Mortinhos da Silva", e permanecer na equipe dos "Largados e Desesperados" pelo máximo de tempo que eu conseguir. Já faz quase dois meses desde que as coisas estão bem ruins, a cidade foi evacuada logo no começo da semana, mas adivinha só?

   Fiquei para trás...

   Não vou mentir, eu estava com medo de sair de casa. Não só pelos canibais assassinos andando por aí, mas porque uma debandada sempre costuma ser barulhenta, cheia de gente se espremendo num espaço minúsculo, enquanto todo mundo está doido para meter o pé e não voltar nunca mais.

   Porém, mesmo que fosse uma decisão estúpida e provavelmente suicida, eu não queria largar o meu apartamento pequeno, minha geladeira velha, minha cama quebrada, meu pote de sorvete preferido e minha maratona de "Piscinas incríveis" para trás. E eu sei, isso é patético, mas era a vida de merda que eu levava...

   Com meu trabalho de merda, meu chefe de merda, relacionamentos de merda e mais toda a merda que se pudesse imaginar!

   —Acho que vou ficar maluco logo logo. – Digo, tentando encontrar qualquer sinal de insanidade em meu comportamento. – Se bem que eu já era louco antes de isso tudo começar.

   Solto um riso anasalado, sem ter para onde olhar...

   Minha casa estava um caos! Roupas e meias espalhadas pela casa, louça suja, lixo  juntando teia de aranha e não quero nem mencionar a situação do banheiro. Pra que se importar, quando se está praticamente morto, não é mesmo?

  —Ben, você tem que dar um jeito nessa bagunça. – Volto a falar, baixo. Os Sibilantes do meu prédio estão meio agitados hoje.

   Era assim que os jornais chamavam os infectados com o vírus SBL-8, um tipo desconhecido de microorganismo muito resistente e agressivo. Ele ataca os neurotransmissores do cérebro, causando um distúrbio violento e descontrolado, que induz a vítima a ter acessos de tremedeira, fúria desmedida e o tão famigerado apetite por carne fresca, seja ela humana ou não.

   Ainda não consigo superar ter visto o porteiro devorar o meu cachorro...

   Volto minha atenção para a dispensa, onde vinha guardando meus últimos suprimentos. Do lado de fora, o vento castigava os céus de uma cidade silenciosa, povoada apenas por Sibilantes esbravejando uns com os outros, talvez no rastro de algum idiota que tenha tido a brilhante ideia de ficar em casa no meio do apocalipse.

   Igualzinho a mim...

   —O momento chegou Benjamin Spring. – Digo, avaliando a procedência de uma caixa de biscoitos pela metade e duas latas de diet coke. – Você vai ter que sair de casa!

   Com um suspiro frustrado, visto meu moletom vermelho, uma calça jeans preta e tênis de cano alto. Ainda bem que comprei eles numa liquidação, no inverno passado, são muito confortáveis. Também recolho minha mochila vazia, o taco de baseball mastigado pelo vizinho e um revólver calibre 38, presente do meu pai, antes de ele morrer, há uns doze anos atrás.

   Eu tinha só dez, naquela época...

   Abro a porta, fazendo o mínimo de barulho possível, enquanto caminho abaixado por um corredor vazio e mal iluminando. O plano era simples, bastava chegar ao elevador, descer até o estacionamento e fazer umas comprinhas na loja de conveniência da esquina. Daria tudo certo, desde que eu não desse de cara com um monte de Sibilantes. 

   Tomo o elevador, até aí tudo bem, nada de imprevistos. Era estranho estar do lado de fora, depois de tanto tempo enfurnado num apartamento tão pequeno. Me sentia livre e revigorado, não importa se todo aquele espaço vago do estacionamento não passasse de uma caixa de concreto fosco, cheia de luzes piscando e pilastras tingidas de amarelo mostarda.

   —Rápido, rápido, rápido... – Sussurro, olhando para todos os lados.

   Contemplo a imensidão dos céus nublados, apertando os olhos, por conta da claridade. A loja de conveniência estava alí, depois de cento e cinquenta metros de puro asfalto e prédios altos. Bastava caminhar por alguns minutos, sem preocupação ou grandes surpresas.

   Foi quando eu ouvi o urro...

   Um Sibilante veio em minha direção. Os braços abertos, o corpo levemente curvado e a boca escancarada, de onde um som estrondoso e gutural emergia. Eu tinha que me mexer, fazer alguma coisa, antes que eu virasse o jantar...

   Peguei a arma, trêmulo. Eu nunca tinha atirado antes, quem dirá matado alguém...

   O Sibilante se aproximava, cada vez mais assustador e enfurecido.

   Tenho que atirar...

   Meu coração saltava oito vezes seguidas. 

   Anda Ben, atira!

   A respiração pesa, meu dedo repousa no gatilho...

   AGORA!!!!

Comer Cérebros Não É Legal Onde histórias criam vida. Descubra agora