5 - O caminho mais tortuoso

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   998 palavras.

   —Eu entendo sua preocupação Kyle. – Digo, já bem cansado de argumentar. – Mas eu moro aqui já tem quase três anos...

   —Você precisa de outras pessoas Ben. – Ele insiste. – Tem cada vez mais Hôgans nas ruas... E se eles pegarem você?

   —E se não pegarem? Acabamos com aqueles três bem fácil, hoje mais cedo.

   Kyle ri, ironicamente.

    —Vou acabar com um braço faltando se continuar partindo pra ignorância com outros Hôgans! – Ao dizer isso, o Sibilante afasta a gola da sua camiseta estranha, até a altura dos ombros.

   Alí, no alto da clavícula, uma enorme mordida se exibia, em tons de vermelho e roxo, contra a imensidão da pele pálida de Kyle.

   Senti uma pontada de culpa ferroar meu coração...

   —Eles só atacaram você por minha causa. – Digo, baixando o olhar. – Se eu estivesse com a arma carregada...

   —Então nem estaríamos tendo essa conversa! – Kyle interrompeu, com um fino sorriso nos lábios.

   Me senti ainda pior...

   —Eu sou uma pessoa horrível! – Lamentei, rindo da minha própria desgraça. – Por que você não fugiu? Ou me pediu pra baixar a arma?

   —Eu estava tentando fazer você borrar as calças! – Kyle riu, atirando uma almofada na minha cara. – E... Eu queria que você me matasse.

   Silêncio...

   —Puta merda! – Esbravejo, horrorizado. – Tem ideia de como isso foi pesado?

   Kyle encarou o chão, um pouco envergonhado...

   —Quando eu fui mordido... – Retomou sua fala, depois de alguns segundos calado. – Estava sozinho... No hospital... Liguei para os meus pais, mas eles ficaram com medo e desligaram... Todos os meus amigos sumiram.

   Engulo em seco. O clima, antes ameno e tranquilo, se tornou denso e triste...

   —Tudo o que eu sei fazer agora é fugir dos Hôgans... Andar com os bandos, ou vir aqui... Não seria aceito em River Valley.

   —Mas você não pode transmitir o Sibilo, pode? – Pergunto, sendo consumido pelo meu coração mole.

   —Não dá pra arriscar. – Kyle finalmente me encara. – Mas você ainda está vivo Ben... Pode ter uma vida lá.

   Solto uma risada baixa.

   —Eu com certeza estragaria isso também...

   —Pare de se lamentar Cowboy! – Rimos. – As pessoas vão amar você em River Valley.

   Não vou negar, ouvir isso me deixou bem feliz... 

   —Vamos juntos então? – O encarei, quase suplicando. – Podemos explicar tudo... Fazer eles entenderem.

   Os olhos de Kyle brilham com fervor, assim que outro dos seus sorrisos frouxos coloriram a face. Me senti menos inútil naquele momento, capaz de cruzar o mundo inteiro, se eu quisesse. Sem falar que aquela cara abobada dele me deixava menos ranzinza.

   —Vamos juntos então! – Kyle diz. – Pode ser amanhã? Queria poder dormir aqui uma última vez.

   Concordo, um pouco assustado... Teria de ir pra River Valley, se quisesse continuar vivendo.

***

   —Não, comer cérebros não é legal! – Kyle protesta, depois que fiz uma piada sobre zumbis. – Isso é bullying sabia?

   Sua desaprovação só me fez rir mais ainda...

   —O que você sentiu? Quando... quando... Você sabe!

   Kyle ponderou por alguns instantes.

   —Eu fiquei bem doente. Tossindo, sangrando e com febre... Mas, depois de um tempo, a dor passou e eu sentia que meus músculos eram feitos de pedra!

   —Wow!

   —Isso foi pouco antes do hospital ser abandonado.

   Kyle e eu estávamos andando sobre trilhos de trem, um pouco mais ofegantes e cansados do que o normal. Eram exatos dois dias de caminhada até River Valley, se não houvesse nenhum imprevisto no caminho. Nós dois tínhamos saído pela manhã, quando o sol mal tinha nascido. Mas, depois de contar todas as piadas que eu conhecia, ou ficar de conversa fiada por horas e horas, já sentia a exaustão se agarrar aos meus ossos.

   A maioria das pessoas roubaria um carro, vocês pensariam. Mas, os carros que sobreviveram ao dia do surto, estão detonados demais para viajar longas distâncias. Sem falar que, o ronco do motor poderia atrair uma horda inteira de Hôgans. E isso não seria nada bom! 

  —Podemos acampar aqui, se você quiser. – Kyle sugere, apontando para uma casa antiga, abandonada próxima às vias ferroviárias. – Já está escurecendo.

   Concordo, agradecendo aos céus pelo bom senso dele. Sem muitas dificuldades, invadimos a casa e nos abrigamos no porão, onde era mais perto da caldeira e, portanto, mais seguro de se fazer uma fogueira. Dividi um saco de marshmallows tostados com Kyle, enquanto me aninhava dentro do meu cobertor felpudo, única lembrança de casa que consegui trazer comigo.

   Sem falar nas minhas roupas, minha escova de dentes e minha xícara de tomar café, o item mais importante de todos. Sem dúvidas!

   —Isso me lembra do tempo que fui escoteiro... – Digo, inebriado por uma dose generosa de nostalgia.

   —Não imagino você como escoteiro. – Kyle se espanta, sentado ao meu lado. Perto o bastante para eu sentir o cheiro de sangue nas suas roupas. 

   —Culpa da minha mãe. – Continuo, imitando a expressão severa que ela costumava fazer. – Ela dizia: "Ben, você tem que aprender a se virar na natureza garoto! Ou vai morrer de fome quando a humanidade entrar em extinção!"

   —Sua mãe estava certa.

   Rimos...

   —Acha que vão encontrar uma cura? – Me aconchego dentro do cobertor peludo.

   —Eu espero que sim... Quero voltar a ter sensibilidade nas mãos.

   Dentro da caldeira, as chamas incandescentes estalam e queimam em vermelho vivo.

   —Qual é a sua lembrança mais feliz Ben? – Kyle volta a perguntar. Algo que era uma particularidade sua, fazer muitas perguntas.

   Suspiro. Era um assunto difícil...

   —Eu tinha oito anos, – Sorrio. – meu pai me levou à um lugar chamado Summerland... Um parque de diversões antigos... Comi tanto algodão-doce que tive uma baita dor de barriga!

   Fico em silêncio. Dá última vez que toquei em um assunto tão íntimo, Kyle ficara chateado...

   —Minha lembrança mais feliz, também é a mais triste... – ele encara as chamas. – Alguém disse que me amava, uma vez...

   —E por que isso é triste?

   —Era mentira.

   Suspiro, enquanto apoio minha cabeça no seu ombro. Não sabia o que dizer, é claro. Mas, às vezes, as palavras nem são tão importantes assim.

   —Tenho que te confessar uma coisa Ben. 

   Sinto o peito gelar.

   —Eu estou morrendo...

Comer Cérebros Não É Legal Onde histórias criam vida. Descubra agora