3 - A linha tênue entre a vida e a morte.

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  990 palavras.

    —Tem certeza de que isso vai dar certo? – Pergunto, pela décima vez seguida. – Olha, se eu morrer, juro que te assombro pelo resto da sua pós vida!

   Kyle franziu a testa, achando uma certa graça na piada, enquanto apanhava seu próprio sangue e o espalhava pelas minhas roupas, mãos e rosto. 

   —Tudo vai ficar bem se você cheirar como eu. – Que coisa mais estranha pra se dizer!

   Cada célula em mim se borrava de medo!

   Estava me sentindo muito encabulado, enquanto os dedos rígidos e gelados de Kyle passavam pelas minhas bochechas rosadas. Sem falar que o "disfarce" mencionado por ele, vinha de uma ferida, aberta bem no meio do seu peito. Um rasgo longo, profundo e levemente curvado na diagonal.

   —Isso não dói... – Kyle sorri tristemente, ao notar meu olhar aflito. – Alguém me pegou com uma faca.

   —Meu Deus...

   —Pronto! – Ele me dá um olhar confiante. – Isso vai manter você seguro por algum tempo.

   Assenti com a cabeça, cerrando os punhos, para conter o nervosismo. Como eu já tinha dito antes, o meu surto anterior tinha atraído vários Sibilantes para o estacionamento. Homens e mulheres infectados caminham próximos uns aos outros, pálidos, sujos de sangue e soltando bramidos sussurrantes. Seus corpos rígidos tremiam fervorosamente, de modo que eu conseguia ouvir o tiritar dos seus dentes batendo. Quase tive um infarto quando três deles passaram por mim, contando os segundos antes de sair correndo de volta para o banheiro.

   Deus sabe como foi difícil resistir à tentação!

   —E aí Bill... – Kyle acena para um Sibilante atarracado e raivoso. – Alarme falso amigão, não tem ninguém aqui.

   O tal Bill apenas rosnou, em resposta...

   —Ele entendeu o que você disse? – Sussurro. Ainda não estou certo se tenho que rosnar também.

   —É complicado... – Kyle responde, dando passos torpes. – Sibilantes usam feromônios para se comunicar... mas parece que eles entendem quando eu falo.

   Nunca estive tão boquiaberto...

   —Já pensou em controlar todos eles? – Digo, inundado por uma repentina empolgação. – Tipo, virar o Rei Zumbi, ou coisa assim?

   Kyle soltou uma gargalhada abafada.

   —Zumbis são burros Ben... Os bandos não tem líderes. Nós só andamos por aí e perseguimos cachorros no centro.

   —Deve ser um ótimo esporte!

   —Sempre aposto corrida com o Bill.

   Rimos.

   Kyle continua a falar sobre as coisas que fazia, para matar tempo. Ele era um cara legal, tenho que admitir. Mesmo antes de toda essa loucura, as pessoas nunca eram prestativas, e falo isso por mim, que sempre fui de seguir a massa, sem olhar além do próprio umbigo. Mas Kyle era diferente, sabia disso desde o momento em que ele pediu desculpas por ter me assustado. Parando para pensar, eu deveria pedir desculpas, afinal, eu quase matei ele!

   —Você tem família em algum lugar? – O meu mais novo amigo Sibilante pergunta, mastigando balas de goma com a boca bem aberta. – Amigos? Ou sei lá?

   Pondero por alguns instantes. Nós dois estávamos dentro de uma farmácia, fuçando em tudo o que tinha de mais forte e perigoso entre dezenas de prateleiras. É claro que o lugar estava uma bagunça infernal, devido aos saques violentos no dia do surto. Mas, tirando pacotes de fraldas comidas e camisinhas usadas jogadas pelo piso, o lugar até que era aconchegante.

   —Meu pai morreu quando eu tinha dez... Já a minha mãe mora num rancho no Alasca. Ela é do tipo que curte sobreviver no meio do mato, caçar e dormir ao relento. essas coisas... E você?

   —Meus pais foram para River Valley... Não tenho notícias deles já tem um tempo.

   Kyle pareceu estar triste, por um breve momento.

   —Sinto muito...

   —Não sinta... Nós nunca fomos muito próximos.

   Droga, agora vou me sentir ainda mais culpado!

   —Olha só isso! – Kyle me encarou com um sorriso maquiavélico, enquanto apanhava uma das camisinhas usadas. – Alguém caprichou no produto...

   Ai meu Deus... QUE NOJO!!!

   —Coloca isso no chão! – solto um grito histérico, como já é de costume.

   Apavorado, vejo o sorriso de Kyle se alargar ainda mais... E, num lapso de segundo, eu sabia exatamente o que ele vai fazer.

   —FICA LONGE DE MIM!!! – Salto em disparada por entre os corredores, sentindo a risada daquele Sibilante maldito no meu encalço.

   Se vocês pensam que zumbis são lentos e burros, experimente fugir desesperado e verá se esse fato é realmente verdadeiro...

   Kyle me perseguiu, por incontáveis minutos, sem parar de rir um só segundo. Eu cortava caminho entre prateleiras, inventava rotas de fuga e me esquivava das suas investidas repentinas, mas ele nunca se cansava. Num certo momento, driblei seu tronco robusto e me lancei para a saída mais próxima, eu conseguiria escapar ileso, só bastava dar mais dois passos, quando senti um duro golpe no tornozelo e desmoronei, miseravelmente, amargando o sabor azedo da derrota.

   E, antes que eu pudesse pensar em fugir, Kyle já estava sobre mim, balançando o preservativo à centímetros de distância do meu rosto...

   —Você se rende? – Ele pergunta, vitorioso.

   —Eu me rendo! Eu me rendo! – Suplico, ofegante. – Agora tira essa porra da minha cara... Literalmente!

   Ele gargalhada ainda mais, ao finalmente me libertar...

   Em circunstâncias normais, eu juro que seria capaz de matar alguém por ter feito aquilo comigo. Mas, ao ver Kyle rir como um débil, minha única alternativa foi me juntar à ele, num coro de risadas abafadas e furiosas demais para serem contidas.

   Agora, éramos apenas dois imbecis deitados dentro de uma farmácia vazia, comendo porcarias e dizendo banalidades...

   —Você é muito legal Ben... – Kyle diz, finalmente se deixando vencer pelo cansaço.

   —E você é o maior babaca! – Respondo, atirando comprimidos na sua cara.

   Kyle revida o ataque, então começamos uma pequena guerra acalorada.

   —Quer ir ao planetário comigo? – O Sibilante pergunta, com os olhos brilhando.

   —Não sei não... É se for perigoso?

   —Não é, eu jur... – Kyle se cala, de repente. – Temos que ir... Agora!

   —O quê? – Digo, em pânico. – O que foi?

   —Estão por perto, estou sentindo o cheiro deles.

   —Q-quem? Mais Sibilantes?

   —Não... – Kyle nega. – Hôgans!

Comer Cérebros Não É Legal Onde histórias criam vida. Descubra agora