CAPITULO QUATRO

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Meus pais nunca foram de brigar, nem pelo menor motivo que seja. Por isso a discussão de agora pouco colocou uma pulga atrás da minha orelha em relação a tudo. Minha mãe parece muito preocupada com o lance do post, mesmo sabendo que o mesmo já foi retirado de linha. Sempre no meu pé mal me deixa respirar, minha folga da escola acaba amanhã, bem em cima da viagem da Veridiana, vou aproveitar pra tirar minha duvida sobre o Nathan, certeza que deve ter algum tipo de histórico ou anuário que me leve ao tal suicida.

Selena ficou de passar aqui em casa hoje, tanto é que a ouço chegar ao quarto enquanto tomo banho.

— qual é a boa? — saio do banheiro enxugando o cabelo

— tem uma coisa que rolou com o Afonso, mas com todo esse lance do post e tudo mais ele pediu pra não contarmos a você — ela diz de braços cruzados escorada na porta.

— o que foi? Ele tá bem? — pego uma camisa no guarda roupas

— Glauco é serio! Não é pra você botar pilha nem nada no menino por conta disso, e nem do post — ela diz se aproximando.

— diz logo Selena!

— o Afonso se assumiu pros pais dele — ela diz em um tom sério e preocupante

— mas eu achei que ele já tinha se assumido qual o BO nisso?

— ele foi expulso de casa... Deu mó briga na casa dele ai os pais o expulsaram de lá, ele tá morando com a Laura na casa dela. Isso foi três dias antes do post, por isso não quero que pense nada errado dele.

É impossível a possibilidade de o Afonso ser o suicida não vir à mente, ele era o único que faltou no dia em que o post foi publicado, e mesmo que isso não signifique nada, ainda é uma hipótese. Prefiro não pensar nisso agora, nem posso imaginar como ele está sentindo, expulso de casa simplesmente por ser quem é.

Desconverso o assunto e logo ela comenta de uma pequena DR dos meus pais na sala quando ela chegou, me fazendo lembrar-se da conversa de ontem sobre o tal Gregório. Penso em perguntar se ela o conhece ou já ouviu falar, mas deixo passar, talvez depois. Veridiana vai passar três dias fora da cidade, e para o meu azar, só volto pra escola quando a mesma voltar. Porém isso não impede de Selena me levar até lá usando a desculpa de uma reunião.

Achar a papelada não está sendo tão fácil quanto eu achei que fosse, sem falar quem nem eu mesmo sei o que estou procurando aqui. Damos uma pausa. Ver tantas folhas brancas está me deixando zonzo. Selena, em decorrência do calor que está por aqui, tira o moletom que sempre usa na escola, o pessoal até começou a se perguntar se ela tinha vários iguais a esse. Seus braços — agora expostos— revelam grandes cortes e feridas que variam de tamanho e de tempo. Apesar de me incomodar só de observar enquanto a mesma mexe nas caixas da sala da diretoria, ela não parece se importar com a vermelhidão e a ardência que tenho certeza que está ali.

— Selena? — chamo a fazendo virar em minha direção

— que? Achou alguma coisa?

Encaro de relance seus braços a fazendo perceber os cortes no pulso tão visíveis quanto o letreiro de Hollywood.

— não... Acha que eu sou o suicida? — ela questiona em um tom serio e confuso — vai desconfiar de todo mundo agora? — fico assustado sem o que responder — eu me corto desde bem antes do Nathan morrer

— não! Eu iria saber, eu iria te ajudar! — digo sem entender nada.

— mas você sa... — ela para como se estivesse deixando escapar algo — você bateu em mim no meu aniversário, revirou meu quarto inteiro atrás das coisas que eu me cortava; contou pros meus pais; eu fiquei um mês sem falar contigo

— o que?! — solto quase sussurrando — eu não me lembro de nada disso!

— esse lance de suicida tá mexendo com a sua cabeça Glau. Tá fazendo você desconfiar dos próprios amigos, não tá deixando você dormir ou viver. Sai disso, vai ver foi só uma troll, e pelo visto você deve ter caído — ela conclui me deixando só na sala rodeados por papeladas.

Selena está certa. Esse caos todo tá mexendo comigo desde que colocaram o nome do Nathan no meio. Não durmo, não como, desconfio de tudo e todos, eu nunca fui assim. Mas não acho que eu esteja seguindo mais por conta do suicida, estou seguindo pelo Nathan, pelo fato dos nossos pais agirem como se ele não existisse, sinto que tem algo errado, mas não comigo. Não sei por que, mas sinto que tem algo que não sei, e esse tal suicida quer me contar, não custa tentar ouvi-lo.

Mandei mensagem pra me desculpar, mas nada de resposta da Selena. Álvaro também tomou um belo chá de sumiço nos últimos dois dias. Ouço meus pais assistindo na sala enquanto vou á cozinha.

— vergonha! Nojo! — nunca em anos ouvir minha mãe falar algo dessa maneira

— essas criaturas deveriam apanhar muito pra aprenderem a ser gente, raça nojenta!

Assusto-me ao extremo vendo meus pais usarem um tom maquiavélico e hostil enquanto assistem uma reportagem na TV sobre uma parada LGBT. Os xingamentos e palavras me confundem me fazendo lembrar automaticamente do post e do link que deu na parada organizada pelo Nathan ano passado

— gente que isso? Por que tão falando esse tipo de coisa? Vocês não são assim — indago chamando a atenção deles

— essa raça merece muito mais que isso Glauco! — meu pai retruca voltando a encarar a TV

— ah então o Nathan também merecia ouvir isso? — suas afeições mudam ao que termino a frase — o ódio, os xingamentos e o muito mais? Ou vocês esqueceram que ele também era da comunidade.

Ambos se encaram durante alguns segundos e logo meu pai inicia o velho discurso sobre não falarmos o nome do Nathan na casa. E antes de eu iniciar uma discussão, ele usa o tom de pai pra me mandar pro quarto. É sempre a mesma coisa nessa casa. Toda vez que tento conversar com eles sobre meu próprio irmão da nisso, que tipos de pais são esses?

Ofegante de novo desperto do maldito pesadelo que tenho desde a infância. Vejo a hora no celular e descubro ser uma da madrugada, sorte a minha que ainda não estou indo pra escola. Sem sono algum, resolvo vasculhar umas das caixas que eu trouxe com a papelada do Nathan. Selena tinha liberado eu trazer algumas antes da nossa DR na sala.

Olhando as paginas, percebo que a data de nascimento dele não bate com a que mamãe sempre diz. Nas folhas do colégio, ele nasceu em 98, dando a entender que ele morreu com dezenove anos, mas mamãe sempre me disse que o Nathan era quatro anos mais velho do que eu, que nasci em 99. Tanto ela quanto meu pai sempre me disseram que ele morreu quando eu tinha uns treze anos de idade, não faz sentido. Porém não é isso que de fato me assustou. No meio das papeladas encontro uma Xerox de um comunicado oficial da escola avisando de um longo recesso por conta de uma reforma. O estranho é que a morte do Nathan cai bem na terceira semana da tal reforma, sendo que meus pais toda vez afirmavam que ele morreu em um acidente de carro indo para a mesma.    

Deixe-me morrerOnde histórias criam vida. Descubra agora