02. Lembrei de nós.

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02. Lembrei de Nós.

O barulho das músicas de mau gosto e das conversas sem sentido atrapalhavam a paz de espírito de Martina. Ok. Ela própria adorava aumentar o som nas músicas da Estereótipo e conversava sozinha, mas tudo tinha limite. Tudo, inclusive as decepções daquele dezembro de 2015. Ela sabia que Carolina (sua ex-amizade colorida) e Miguel (sua grande paixão platônica) haviam se casado no final de 2014, mas aquilo já era demais.

– Olá, Martina, quanto tempo! Soube que estavas para acabar o segundo ciclo. – Disse a voz tão conhecida pela garota sem sorte de Madeira.

– Não, não deu certo. Talvez eu tente alguma coisa pelo Brasil. – Respondeu Martina, notando uma criança recém-nascida no colo da ex-amiga.

– Você adora o Brasil, não é? Sempre desconfiei que tinhas vivido no lugar errado.

– É que sou brasileira de nascimento, não é? Então, essa criança é...

– Nossa filha. – Interferiu o homem charmoso que vinha chegando depois. – E para aumentar a nossa alegria fui aprovado para trabalhar num grande escritório de advocacia em Lisboa.

– Que bom, que bom... – Fingiu Martina, pegando em seguida o primeiro copo da primeira bandeja que vira. Aquilo poderia ser bebida alcoólica? Podia. Mas nada era capaz de abalar mais o sistema nervoso de Martina. Pelo menos era isso que ela achava...

****

Bernardo acabara o jantar, beijara a testa e fora prontamente ao seu quarto. Eram apenas 19h30, mas Ben acordaria logo cedo para treinar nas piscinas vazias do Praia Clube. Sua sorte era que Evangeline era muito mais mimada pelo treinador Edson do que Ben e isso fora fundamental para que ela conseguisse a chave para os dois. Sim, Ben era enteado do irmão de Edson e este não podia demonstrar favorecimento com o "sobrinho". Sim. Ben tinha que aperfeiçoar suas marcas nos 200m livre, 100m costas, 100m peito e 200m medley para as Paralimpíadas do Rio.

– Não se esqueça que sua mãe chega às 13h00 amanhã, viu? Volte cedo do treino. – Avisou dona Laurinda, avó de Ben.  Quando decidiu se mudar para Uberlândia e se tornar nadador profissional, Bernardo morava apenas com a sua avó e seu tio Luiz. Sua mãe, seu padrasto e seu meio-irmão permaneceram em São Carlos, cidade de onde Ben era natural.

Ben refez mentalmente a lista de tarefas para o dia seguinte. (1) Precisava quebrar seu próprio recorde pessoal de 1m57s29 nos 200m livre. (2) Precisava acordar cedo (o que devia ser o item 0). (3) Precisava quebrar seu recorde de 1m08s17 nos 100m peito. (4) Encontrar sua mãe às 13h00. (5) Ah, e ainda tinha que quebrar seu recorde de 2m45s09 nos 100m costas.

 Assim, ele dormiu bem e esperou que o dia seguinte fosse bom. Seria bom e ele teria foco (apesar do TDAH) se não fosse por um detalhe: aquele sonho de sempre.

Bernardo estava de volta à água, mas não eram as calmas águas das piscinas do Praia Clube. Não. A água parecia ter vida própria e vinha do mar. E ela estava lá de novo, mas Ben não conseguia ver o seu rosto. Era a sua sereia, o grande amor de suas vidas. A mulher, com traços de menina, no fundo do mar chorava por algo perdido, algo que Bernardo ou quem é que ele fosse ali não poderia recuperar. Ele se aproximou da sereia, beijou-a e, antes que pudesse ver seu rosto, abriu os olhos. Estava de volta ao seu quarto, em Uberlândia, Minas Gerais.

****

Martina havia pegado um ônibus de volta para casa (sem falar com sua mãe, ela já tinha 20 anos de idade e deveria aprender a ser independente) até perceber que aquele ônibus não ia para sua casa coisíssima nenhuma. Ok. A bela luso-brasileira tentou se acalmar. "Quem nunca pegou o ônibus errado às 23h45 da noite?", pensou. "E também quem nunca deixou seu celular ficar só com 2% de bateria numa situação dessas? Normal. Isso deve ser bem comum de acontecer com neurotípicos", completou. Ok. Martina só precisava respirar... Respirar e beber mais um pouquinho. "Não é de todo mal beber uma vez na vida, não é?", tentou defender-se a ex-mestranda. Sobre isso, devo fazer duas pequenas observações: (1) Desde que começara a tratar o Transtorno de Bipolar, Martina estava proibida de tomar bebidas alcoólicas ou drogas. Se quisesse desfrutar do vício mais letal entre superestrelas do rock, deveria substituir a medicação por algum remédio natural por alguns dias. (2) Ela não estava bebendo pouco.

Eram 01h32 da madrugada quando nossa heroína chegara a algum lugar. Ela ficaria sabendo dias depois que tratava-se do Monte Palace Madeira. A desprovida de sorte permitiu-se andar pelo hotel. Normal. Ela era só uma adulta (que andava sempre acompanhada) sozinha em um lugar esquisito. Quisesse que essa fosse a maior tragédia daquele singular dia... Algo no Cemitério do Monte (nome que ela só descobriria depois da maravilhosa aventura) a encantara. Andara entre túmulos, subira, descera e subira novamente escadas, andara em círculos, de trás para frente, até que se viu em uma ruela calçamentada. E no meio do caminho tinha uma pedra, tinha uma pedra no meio do caminho. E fora nessa pedra em que Martina tropeçara e caíra na ruela.

A pobre moça em seu pesadelo ou alucinação se viu entre árvores caindo (que por algum motivo não atingia ela). Ela tinha os cabelos loiros soltos e seu vestido azul-claro de algodão (ela fora com uma blusa vermelha para a festa). Sua consciência contou-lhe que estava em uma floresta tropical em frente ao oceano. Okay. Aparentemente Martina chegara ao Brasil só com aquela queda. A moça deu um suspiro de alívio antes de perceber o caixão de palhas em frente ao mar. Melhor ainda: Martina seria enterrada e jogada entre baleias e golfinhos. Em seguida, uma mulher, de roupas brancas e uma espécie de luz branca no rosto, viera conversar com Martina.

– Eu morri, não foi? – Perguntou à mulher angelical. Só seus sapatos amarelos contrastavam com suas roupas.

– Sim. Você morreu há quase 21 anos. – Respondeu. A voz da mulher era bem familiar à sonhadora.

– Mas eu só tenho 20 anos e...

– Não estou falando de agora, estou falando de antes de você ser Martina. Olhe... – Disse Sapato Amarelo apontando para o caixão de palhas. – É você quem está aí dentro.

Martina não conseguiu conter o seu susto. Dentro do caixão havia ninguém mais ninguém menos do que o fantasma que sempre temeu ver: Mateo de Ophiuchus.

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