01. Os desconcertos de Martina.
Martina deveria corrigir os erros de seu projeto, mas preferia um milhão de vezes escutar o último álbum da Estereótipo de Gênio. Aquela era a banda de sua vida (desde o instante em que se viu solteirona por toda a eternidade) e a luso-brasileira precisava tirar sua ansiedade latente e cultivar o sentimento de gratidão. Gratidão por ser uma das únicas pessoas em Portugal a admirar uma banda tão divina quanto aquela! A Estereótipo só tinha lançado 112 músicas durante seus dezessete anos de existência e Martina, que só tinha 21 anos, perguntou-se se as suas 300 e poucas músicas eram demais ou se o poeta grego escolheu a dedo o que ia ou não compartilhar com o mundo. "Hoje morreu de amor, quem potencializou a sua dor, hoje morreu de amor, quem potencializou a sua dor. Estou achada e acelerada, ansiosa e abstrata, para viver o que sonhei...", cantava e repetia Martina. Na verdade, a letra original tinha "achado", "acelerado", "ansioso" e "abstrato" no lugar, mas Mateo (que gostava de se vestir de mulher) não acharia aquilo ruim.
– A tua orientadora está esperando-te no meu telemóvel, Martina! – Gritou sua mãe. – O que fizeste com o teu, hein?
A mãe de Martina, dona Isabel Álvares, tinha cabelos castanhos claros e um rosto sereno. Era a única filha de dona Rosa Álvares, assim como Martina de sua mãe. Já a fã de Estereótipo de Gênio era loira e tinha olhos que camuflavam entre um verde-musgo e um vermelho âmbar. Martina morava desde os três anos de idade com sua mãe e sua avó na Ilha da Madeira em Portugal, mas era brasileira, natural de Jundiaí. Temia que Joana de Lopes, sua orientadora, reclamasse mais uma vez de um projeto escrito em língua brasileira em vez de português nativo.
– Estás editando o que ela pediu-te? – Continuou Isabel.
– Mamãe, muito mais brasileiros lerão minha monografia do que portugueses! – Justificou-se a Álvares mais nova com palavras brasileiras e velocidade portuguesa. – E eu sou luso-brasileira com orgulho!
– Quando pões algo na cabeça, só os anjos convencem-te do contrário! – Suspirou Isabel.
O dia seguinte, o tão aguardado dia da sua defesa de projeto (o que lhe concederia título de mestra em Biologia Aplicada pela Universidade da Madeira) finalmente chegara. Era 15 de dezembro de 2015. Lá estava Martina diante do esplêndido prédio branco. Seu sonho era acabar de vez com aquilo tudo e subir em um cruzeiro, onde cantaria divinamente suas canções (e quem sabe as da Estereótipo também). Sim, o sonho de Martina era obter um diploma para poder cantar em um cruzeiro em paz. Tais devaneios lhe foram embaraçados quando a jovem pensara ter visto um menino parecido com Pablito de Tebas por ali. Será que um imitador Kayros de Delos também marcaria presença naquela data especial? "Não, Mateo de Ophiuchus não. Não estou preparada para ver seu cover, pois confundiria com seu fantasma." Martina tinha medo do fantasma de Mateo lhe aparecer desde a noite em que assistira ao vídeo (de três horas) sobre sua morte no YouTube.
– Martina, Martina! – Gritou a avó da menina. A mãe e a avó da sonhadora lhe acompanhavam. – A tua orientadora está olhando-te há uns dez minutos.
– Ah, Joana, muito prazer em revê-la. Eu só estava acertando os últimos detalhes em minha mente. – Desculpou-se.
– Espero que tua monografia tenha referências portuguesas suficientes. – Disse-lhe Joana.
– Ora, não era apenas a monografia que era para estar em português de Portugal? – Indagou.
Menos de uma hora depois daquela pergunta Martina se viu desesperada (e surtada)."Como assim sua dissertação fora insatisfatória?". Só porque não tinha nenhuma referência do Journal of Citation Reports? "Eles não podem me desprezar desse jeito. Eu sou a melhor aluna do curso de Biologia há cinco anos!", pensou a moça. Para Martina não fazia sentido aquela derrota. Sim, ela perdera o seu primeiro amor e sua melhor amiga ao mesmo tempo (e ela sentia tesão pelos dois). Sim. Ela saíra correndo da Terreiro das Bruxas (em Lousã) e surtara logo em seguida, recebendo os diagnósticos de Transtorno Bipolar e Transtorno do Espectro Autista nos próximos dois anos (vide anos 2010, 2011 e 2012).
– Por favor, eu posso adicionar um artigo do Journals em até um mês. O volume de lixo na costa sul da Madeira está tornando-se insustentável. Esta não pesquisa não é importante só para mim, mas como para toda a ciência em Portugal.
– Aturamos tua estranheza e minimizamos as queixas de teus colegas sobre teu comportamento por muito tempo. O mínimo que você podia fazer era escrever uma monografia em português nativo e obter as referências necessárias. Perdoamos-te demais, senhorita Álvares. – Disse um dos professores.
Duas horas após estes eventos, Martina se encontrava em sua cama fazendo conchinha com seu urso. Era impossível, naquelas circunstâncias, não lembrar do que lhe fora dito no Terreiro das Bruxas: "Você nasceu cheia de dons, mas poucos lhe darão atenção, pois você não assumiu a responsabilidade completa quando pode." Será que aquela mulher já estava prevendo seu fracasso recém-acontecido? Mas, ela estava falando no passado, então...
Cinco dias passaram-se em insônia sem nenhuma resposta concreta sobre isso. Dona Isabel tentou animar Martina colocando "Os Poetas Gregos", primeiro álbum da Estereótipo, para tocar. "Todos temos nossas fases, e cada uma delas é uma passagem, o fim às vezes é o recomeço...", cantarolava a mãe. "Mãe, eu não vou para a festa hoje nem que a senhora decore A Penúltima Odisseia!", garantiu Martina. Martina acabou descumprindo sua palavra, não só por respeito à mãe, mas pelo medo do escuro. "E quem será que irá me amar, com todas minhas estranhezas, algum ser divino ou alguém que conheça...", havia escrito a loira no dia anterior. Era noite de 20 de dezembro de 2015 e a poetisa estaria se sentindo outra pessoa quando retornasse ao lar.
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Caminhos do Mar
DuchoweMartina é uma moleca estranha e cheia de traumas. Sem sorte no amor, na ciência e na música, a pobre garota descobre que foi seu maior ídolo em uma vida anterior e que o grande amor de sua vida passada se encontra a sete cidades de seu pai alcoólatr...