09. A mulher que eu amo.
Fazer a omelete perfeita era quase mais difícil do que ser vocalista de uma banda de rock. Mas, por Clarisse, aquele sacrifício valia a pena. Clarisse, a praiana zangada de outrora, era a mulher mais inteligente que Matheus conhecera. Seu gosto por Led Zeppelin era um exemplo disso. Clarisse valia a pena.
– Então, você se veste como andrógino no palco por causa do Ney Matogrosso? – Perguntou, enquanto arrumava a mesa.
– Nunca! Eu não chego aos pés dele em termos de figurino. – Respondeu Matheus. – É só uma provocação minha e de tantos outros cantores ao movimento hippie. É o famoso glam rock ou glitter rock. As fronteiras entre o masculino e o feminino são rompidas. Eu me sinto homem e mulher ao mesmo tempo, por exemplo, quando canto "Mente Adolescente".
– Se não foi por causa do Ney, você deve ter se inspirado na Rita Lee. Você me falou que era fã da antiga banda dela, Os Mutantes, não é isso?
– Não exatamente. O glitter rock não é exclusivo do Brasil. Os ingleses iniciaram esse movimento no final da década de 60. David Bowie, por exemplo, encarnou um alien, o famoso Ziggy Stardust.
Após o almoço, Clarisse retirou o segundo disco do álbum duplo do seu novo cúmplice e colocou no Led Zeppelin IV. Rodou o vinil até chegar em "Stairway To Heaven", sua música favorita. Depois, abraçou Matheus e olhou em seus olhos.
– Eu quero saber se você gosta mesmo de mim ou se isso tudo é mais um teatro encenado, como você costuma fazer nos palcos.
Martina/Mateo sabia o que viria em seguida e sorriu serenamente. "Veridiana, minha filha, você foi gerada nesta tarde...", pensou o infeliz homem. Era 13 de setembro de 1986.
– Sou um perdido, moça, ainda bem que você não me conhece... Mas, se tu aceitar, eu posso até me casar na Igreja Católica com você e aguentar o padre falando sobre o poder da conversão.
– Quem disse que eu não te conheço? Posso não ser fã do Mateo de Ophiuchus, mas essas últimas semanas foram o bastante para que eu me tornasse fã do Matheus Pasternak. Você é um homem sensível e de um coração gigante. Você é incrível. – Respondeu a praiana. – Agora, essa ideia aí de casamento... Não, não quero pensar nisso hoje. Na verdade, eu quero descobrir suas habilidades sexuais.
Era uma coisa louca, mas Martina, mesmo sendo virgem, podia sentir todo o prazer do sexo. O mais louco era que, mesmo estando mulher, ela também podia sentir que penetrava Clarisse. Clarisse... Aquela era a mulher que ela amava e sempre amaria, de uma forma ou outra.
– Matheus, eu gostaria de falar uma coisa com você... Eu acho que, agora que te entreguei o meu corpo, eu posso te mostrar uma parte da minha alma. É sobre a primeira vez que eu tive um homem penetrando em mim...
– Amor, você pode me falar isso sem rodeios. Não sou puritano como os meus pais. – Respondeu Matheus.
– Eu já te disse que minha cidade natal é São Francisco de Assis do Rio Grande do Sul. Porém, eu não te expliquei como e o porquê eu saí de lá.
– Sim, sim. A Marcilla, minha amiga ou ex-amiga, sei lá, é de Santo Ângelo, lá do Rio Grande do Sul também. Você adoraria conhecê-la.
– Eu tinha nove anos, a mesma idade que você foi despachado para a Grécia por causa de um beijo. Mas, o que aconteceu comigo, foi muito pior. Ele almoçava, jantava com a gente... Era viúvo e fazendeiro, então sempre dizia estar muito ocupado para cuidar de tudo. Ele já estava de olho em mim. – Matheus sentou-se na cama e segurou na mão de Clarisse. – Era um dia de chuva quando ele me chamou para ver o potrinho que tinha nascido. Eu, inocente, fui. Lá mesmo ele me estuprou. Eu fiquei toda ensanguentada, mas, para disfarçar, ele deu um banho em mim e disse aos meus que eu tinha me sujado de estrume. No dia seguinte, ele voltou para minha casa, dessa vez com a desculpa que precisava de uma ajudante em sua casa. Eu não queria ir, mas meus pais insistiram e me deixaram sem refeição até que eu mudasse de ideia. Tive que trabalhar na casa desse monstro, ser constantemente violentada e ameaçada. Ele me dizia que ninguém ia acreditar em mim...
– Clarisse, eu, eu... – Gaguejou Matheus.
– Passei a ficar reclusa em meu quarto e não falava nem mesmo com os professores na escola. Comecei a tomar as minhas primeiras drogas por volta dos 11 anos. Não, não são essas que eu uso hoje, eram as drogas receitadas pelos médicos. Já ouviu falar da imipramina e do valium? – Martina, que invadira as lembranças de seu eu anterior, desligou-se por instantes daquela odisseia. Lembrou-se de suas próprias drogas receitadas, drogas estas paradas antes que tomasse o chá ayahuasca. Eram elas: lítio, fluoxetina, alprazolam. – De início fizeram efeito, mas depois... Como é que eu ia melhorar de alguma coisa convivendo com aquele monstro? Aos 13, tudo piorou.
– E ainda tem como piorar, meu amor? – Indagou Matheus.
– Eu engravidei daquele monstro. Eu já estava com uns quatro para cinco meses, quando ele deu chutes na minha barriga e me fez perder o bebê. Fui para a emergência por causa da hemorragia. Contei tudo, chorando, para a minha mãe e ela não acreditou. Disse que era impossível que um homem tão bom quanto aquele fosse capaz de fazer tamanho mal. Ela contou para meu pai e os dois deduziram que eu havia seduzido o fazendeiro para que pudesse me tornar dona daquilo tudo. Eles queriam que eu me casasse com meu algoz. Claro que eu neguei e, consequentemente, fui chamada de prostituta. Saí de casa e passei a morar numa pequena capela da cidade. O padre se vangloriava do seu feito e repetia constantemente nas missas que "quem nunca errou que atire a primeira pedra". Fugi de São Francisco de Assis, a cidade que não tinha nada a ver com o santo de mesmo nome. Eu só tinha 14 anos. – Falava Clarisse, soluçando após o relato.
– Ei, não precisa me contar tudo agora. – Aconselhou o cantor. – Eu te amo e acredito em você.
As próximas lembranças, que se apresentaram em preto e branco, foram rápidas. Mateo deixou o Hotel Veleiro e foi morar com a amada. O número de telefone de Clarisse foi entregue à recepcionista, caso alguém lembrasse que ele ainda existia. Tudo doía no moribundo. O coração de Mateo, que também era o de Martina, ficava cada vez mais apertado. Lembrou-se de uma música nunca gravada pela Estereótipo de Gênio, escrita num caderninho preto. Martina podia cantá-la naquele instante: "O mar azul às seis da manhã não é mais bonito do que você, sei, sou bobo por assim dizer, mas eu não posso me contradizer..." . Clarisse, para o enamorado, era a personificação da senhora das tempestades e ventanias, Iansã.
Os dias passaram-se e o filho mais velho de Helena não queria mais saber de banda nem de fama. Talvez finalmente usasse seu diploma de arquitetura, diploma este obtido numa faculdade, ainda experimental, em São Carlos. Pensou, também, em Maria Márcia, sua colega de curso, e em seu bebê, que estava para nascer. Era 05 de outubro de 1986. Ele sentiria falta da esposa de Kayros. Coincidentemente, Márcia também estava pensando em Matheus.
– Matheus, uma garota de São Carlos quer falar com você. – Disse Clarisse, que havia atendido o telefone. O cantor pegou-o, então, para si.
– Quem é? – Indagou.
– É a Marcilla, Mateo. – Respondeu. – Eu preciso que você me ajude a enterrar os meus pais.
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Caminhos do Mar
SpiritualitéMartina é uma moleca estranha e cheia de traumas. Sem sorte no amor, na ciência e na música, a pobre garota descobre que foi seu maior ídolo em uma vida anterior e que o grande amor de sua vida passada se encontra a sete cidades de seu pai alcoólatr...