03. A borboleta rosa e preta.

25 1 0
                                    

03. A borboleta rosa e preta.

Martina estava... ops. Mateo estava vestido com blusa e calça sociais brancas e a usual bandana rosa magenta em sua cabeça. O lado esquerdo da bandana estava ensanguentado e logo Martina percebeu (ou lembrou) que a causa de sua morte fora o traumatismo causado pela queda do pequeno bote em que estava. O sonho fora interrompido por empregados do Monte Palace Madeira, que levaram a moça para um quarto do hotel e notificaram à polícia sobre o ocorrido. Antes que sua mãe e avó chegassem para lhe resgatar (e dizer o quanto temeram que o pior tivesse acontecido), o sonho continuou. Martina não sabia se ria ou chorava com a revelação. Primeiro, ela tinha resquícios da genialidade de Mateo? Não, não se comparava. Não que Martina não fosse inteligente (ela era e muito), mas ainda não havia conseguido aprender muita coisa do grego (coisa que Mateo dominava). Segundo, Martina era puritana e Mateo tinha sido obcecado por sexo. Terceiro, a luso-brasileira não sentia nenhum tipo de atração por drogas. Quarto, ela não tinha capacidade de liderar nem uma ninhada de gatos recém-nascidos, imagina uma banda de rock!

Sapato Amarelo esperou, pacientemente, sua protegida sair do estupor. A menina, que era apenas uma superdotada malsucedida no amor, tinha se tornado a reencarnação de seu ídolo! (Correção: ela sempre fora).

– Só uma pergunta... Eu vou conseguir passar num novo mestrado? Sabe, eu preciso me alimentar nessa vida...

– Olhe o que aparece ao nosso redor e terás uma noção do que conseguirá alcançar em breve. – Disse Sapato. Martina só conseguia ver uma floresta tropical bem conservada (será que ela voltara ao ano 1500, ano da chegada dos portugueses ao Brasil?). – Se aventurarás do outro lado do Oceano na gigantesca pátria filha.

– E as minhas músicas, eu, eu...

– Vai conseguir superar o sucesso da Estereótipo, isto é, se você se permitir. É o natural, a evolução das coisas. – Respondeu. – Fique com sua família, ela já está chegando. – Anunciou a mulher angelical.

****

Não era nada fácil olhar para o espelho e procurar semelhanças físicas com Matheus Pasternak Filho. É, Matheus era um homem de altura média e Martina era alta para os padrões das garotas. No total, o finado (ou melhor reencarnado) era cerca de oito centímetros mais alto que Martina. Matheus tinha olhos castanhos escuros, já os de Martina podiam muito bem serem avelã ou âmbar (dependendo da situação em que se encontrava). Não, comparações físicas não ajudariam Martina a saber se estava louca ou lúcida. Não, muito menos maratonar vídeos no YouTube sobre a sua morte (a de Mateo, na verdade), mas era isso o que a ex-mestranda estava fazendo. Nenhum fantasma lhe apareceria (ela era o "fantasma").

A decisão fora tomada após uma enxurrada de mensagens nas fanpages da Estereótipo. Todos lamentavam a ausência de Mateo. Todos diziam que não haveria ninguém como ele. Como compositor, era fora de curva; como cantor, era melhor do que dez mil atores. Deixa eu explicar: além de compor "A Penúltima Odisseia", canção gigantesca que falava da tragédia vivida por semideuses gregos, Matheus Pasternak se fazia de mulher em boa parte de suas canções (talvez, por isso, ele tenha escolhido ser uma loirinha luso-brasileira na vida presente).

Era véspera de Natal quando Martina começou a encarar a sua morte. Matheus havia perdido a vida 21 anos antes (e Martina faria 20 anos e dois meses naquele dia 31). Parecia que o Céu não gostou muito da ideia de manter o poeta vencido pelos vícios por lá. Era, como sempre, aterrorizante assistir aquilo, mas necessário. Matheus Pasternak Filho, ou melhor, Mateo de Ophiuchus morrera de modo inesquecível. Era manhã do dia 24 de dezembro de 1994 quando um amigo próximo percebera a ausência de Matheus em seu apartamento. Uma carta, abaixo de uma garrafa de vodca, destinada à Veridiana, filha de Matheus, alertara o amigo anônimo. Seguiu-se uma busca desenfreada e pouco depois da chegada de Cecília Pasternak à cidade de São Sebastião, os salva-vidas encontraram o que todos temiam: o corpo de Mateo estava às margens da praia, próximo a um pequeno bote. No bote havia outra garrafa de vodca e no céu um arco-íris se formava após a tempestade. A causa da morte não poderia ser outra: suicídio indireto. O machucado obtido no Cemitério do Monte doía. Era no mesmo lugar que lhe levara à sua última morte.

****

Os últimos três meses não foram fáceis para Martina. Já era 20 de março de 2016 e as estratégias que a moça usara para esquecer que fora Matheus não surtiram muito efeito. Ler e reler as sagas "Percy Jackson e os Olimpianos" e "Os Heróis do Olimpo" só lhe fez lembrar de como havia descoberto (naquela vida) a banda Estereótipo de Gênio. Além disso, "A Penúltima Odisseia" não saía de sua cabeça. Será que o próprio Mateo havia lhe rogado uma praga inconsciente ao cantar "Então o poderoso rei dos Céus, fez cair um raio sobre Matheus..."? Bem, era certo que Martina, digo, Matheus havia morrido num dia de tempestade...

As deduções da filha de Isabel foram interrompidas por uma borboleta rosa e preta que pousou em sua mão. Martina descobriria instantes depois tratar-se da borboleta rosa de luto. E fora pensando na enlutada que a loira dormira naquela noite. Como quase sempre seus sonhos começavam com a moça olhando-se para um espelho e esperando ver o ídolo reencarnado do outro lado. Martina não via nada além de si mesma e as indagações sobre o futuro e o passado de outrora. Porém, desta vez, um pequeno redemoinho de energia saiu de trás de seu pescoço. Não, não era Sapato Amarelo que lhe aparecia. "Estamos na sexta dimensão. Enfim, podemos ter duas versões de nós simultaneamente", disse o gênio da música paulista. Mateo estava, novamente, vestido de branco mas dessa vez a sua ferida não era no lado esquerdo da testa e sim no coração. "O orgulho nos matou", respondeu ao ser perguntado sobre a causa de sua morte. "Martina, você carrega 68% de nossos fractais. Eu preciso que você recupere os outros 32% que estão presos em más lembranças e momentos ruins", decretou. Por fim, o 'fantasma' pegara a mão de Martina e lhe entregara uma borboleta rosa e preta, dizendo: "Eu te entrego todas as nossas virtudes de volta. Vá lá e reencontre o caminho". A garota acordou assustada naquela madrugada de 21 de março de 2016. Matheus faria 56 anos se estivesse vivo.

Caminhos do MarOnde histórias criam vida. Descubra agora