05. Odes ao poeta grego, parte 01.

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05. Odes ao poeta grego, parte 01.

Martina adormeceu e se encontrou em uma mente com pensamentos bem distintos dos seus usuais. Era a mente de Matheus e tudo que eles conseguiam ver era uma tempestade vindo naquela direção. Matheus estava em um bote e com uma garrafa de vodca ao lado. Ele não queria que as coisas acabassem daquele jeito, mas já não havia jeito algum para sua vida. Vestia roupas pretas, como se estivesse de luto pela vida que nunca chegaria a ter e amarrou sua querida bandana rosa na garrafa.

Matheus recordou de quando tinha nove anos e descobriu sua bissexualidade. Ele achava as meninas fofas e diplomáticas e até teria um romance com a mais inteligente da sala, mas seu primo Gabriel lhe fazia sentir um sentimento bem mais intruso e intenso. Bem, apesar das boas intenções do garoto, nem tudo seria coraçõezinhos apaixonados na vida de Matheus Filho. Seu pai, o Matheus mais velho, flagrara o primeiro grande marco de sua vida: o beijo no primo Gabriel. "Eu pensei em negar o convite por causa das crianças, mas já não posso fazer isso, Helena. Matheuzinho passou de todos os limites", dizia o diplomata. "Vou trabalhar na embaixada da Grécia, é o melhor para todos. A distância vai tirar essa confusão que se instalou na cabeça do nosso filho." A Martina, que estava dentro da mente de Matheus, congelou por alguns instantes. Então era por isso que o herói assassinado por Zeus se chamava Matheus e a mocinha enganada por ele era Helena?

Seguiu-se, após esta interrogação, os pensamentos do poeta. A ida de Matheus para Grécia não fora em vão e lá o então pré-adolescente construiu a personalidade que lhe acompanharia até aquele último dia. Interessou-se, naquela época, especialmente pelo mito de Aristófanes. Segundo os mitos gregos existiam três tipos de humanos, cada um com dois órgãos sexuais: o macho possuía dois pênis, a fêmea duas vaginas e o andrógino um pênis e uma vagina. Porém, Zeus cortou cada humano ao meio, pois estes queriam se rebelar contra os deuses. A partir de então os humanos buscam se completarem através da união sexual. Isso explicava, sem preconceitos, a atração que Matheus sentia tanto por homens quanto por mulheres.

Depois desta reflexão o cenário mudou. Matheus era adolescente e estava de volta à sua cidade natal, São Carlos. Ele já tinha 16 anos e pretendia prestar vestibular para Arquitetura. Pensava nisso enquanto caminhava por sua cidade, até que ele viu algo que mudaria sua vida para sempre. O antigo coral de beatas, no qual sua mãe levava ele e Cecília, seria demolido pela prefeitura se não tivesse uso. Dali partiu a brilhante ideia de reutilizar aquele espaço para tirar sua juventude do tédio em ascensão. "Papai, eu prometo, que agora eu serei um anjo", disse o rapaz ao pai, que através da sua influência impediu a demolição. "Vou montar um clube para tocar na igreja", mentiu. "Só preciso encontrar outros vestibulandos interessados. A gente aproveita e estuda pro vestibular. Eu vou tentar arquitetura na USP", concluiu. Era setembro de 1976.

Matheus espalhou pelos diversos bairros das cidades a boa-nova sobre o "Clube da Igreja", com uma sutil mão chifrada em cada cartaz. O rapaz sabia tocar harpa e violino, mas queria parceiros que lhe ensinassem sobre o Rock and Roll. A lembrança de ouvir "A minha menina", de Os Mutantes, enquanto corria ao redor de sua casa era persistente. Ele queria viver aquela emoção de novo.

O primeiro inscrito para o clube era um rapaz negro de semblante calmo. Ele também prestaria vestibular para a USP de São Carlos, só que para faculdade de música. Matheus quase mudou de ideia sobre seu curso depois da conversa com o novo conhecido, mas preferiu não parecer indeciso diante do pai. Além disso, ele não queria misturar algo tão legal com a vida enfadonha de universitária. O rapaz se chamava Kayo e se tornaria, em breve, um de seus melhores amigos de todas as vidas. Era natural de Nova Friburgo, mas se mudara para São Carlos para tentar a vida (leia como: os pais católicos não aceitavam sua afeição pela doutrina espírita). Era quinze dias mais velho que Matheus. Sabia tudo sobre Teoria Musical. Recebeu o apelido de Kayros de Mateo, já que este havia chegado no momento oportuno.

O segundo inscrito era gay e curtia drogas pra caramba. Era três anos mais velho que Kayros e Mateo. Gostava de ser chamado de Bidu, como o cachorro azul da Turma da Mônica. Já era veterano do curso de música na USP de São Carlos. Seu nome real era Benedito e foi com ele que Matheus perdera a vergonha em um dos banheiros da Universidade de São Paulo. Trouxe o irmão, Bento, que se tornou o terceiro inscrito. Bento já havia passado para o vestibular para o curso de Audiovisual (leia Cinema), assim como Kayo e Matheus também haviam passado para seus respectivos cursos.

A quarta inscrita era colega de curso de Matheus. Seu nome era Maria Márcia e logo viu um grande diferencial em Kayo. Anos mais tarde os dois se casariam e teriam duas belas crianças. Martina (ou Matheus?) chorou naquele instante em seu bote. Ele nunca mais veria Kayke, filho mais velho dos dois, pegar a boneca de Veridiana nas festinhas entre amigos (ou jogar sorvete de limão na cabeça desta).

O quinto e último inscrito viera desavisado ao "Clube da Igreja" (que, na verdade, era de rock e tinha muita cerveja). Sim, Matheus e sua turma tocavam, sempre que podiam, a Ave-Maria de Schubert nas missas da cidade. Não, eles não ensaiavam apenas músicas católicas no Clube. O moço era moreno e tinha uma certa ingenuidade no rosto. Fora Kayo quem atendera a campainha naquele dia. "Este é o Clube da Igreja, não é? Então por que vocês estão tocando A Balada do Louco?", indagou. Matheus pretendia expulsar o intruso, mas a beleza desse não o deixou. Aquele era o garoto mais bonito de todo interior de São Paulo (e, quem sabe, do Brasil). Infelizmente era hétero. "Claro que aqui é o Clube da Igreja. Não vê que todos somos rapazes católicos?", respondeu Matheus, com segundas intenções. O novato se chamava João Paulo, mas ficaria conhecido anos mais tarde como Pablito de Tebas. 

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