06. Odes ao poeta grego, parte 02.
Eva olhou com orgulho para o pôster de sua banda preferida em seu quarto. O gosto musical, que herdara dos pais, era, depois da natação, a sua marca registrada. Assim, saíra de casa com fones de ouvidos e playlists previamente selecionadas. Refletiu, mais uma vez, sobre a letra de "Primeiro, mulher" e pensou que se, Mateo de Ophiuchus ainda estivesse vivo, provavelmente teria se assumido transexual.
Os pensamentos de Evangeline foram interrompidos pela chegada do ônibus no ponto do Praia Clube. Após essas conclusões, a moça aconchegou-se em uma das cadeiras em frente da Piscina Olímpica. "Daqui a uns dias isso daqui vai ficar cheio de estrangeiros", pensou. As Olimpíadas e Paralimpíadas seriam em agosto e setembro, respectivamente, e o Praia receberia atletas de várias delegações. Aproveitando o silêncio e a solidão, Eva decidiu ouvir "A Penúltima Odisseia", o maior sucesso da Estereótipo de Gênio. Assustou-se quando, ainda na primeira estrofe, ouviu os passos de Ben. Ben era um rapaz peculiar: nadava feito em um golfinho, mas sentia falta de ar ao escutar as músicas da Estereótipo.
– Pode escutá-la, Eva. – Disse o rapaz, percebendo a intenção da amiga de parar a música. – Tio Luiz um dia pediu uma das músicas dos "Gênios" para a rádio e, cê acredita, minha respiração manteve-se normal. É aquela música em que Hera mete gaia no Zeus, não é?
– Não, não, a música não é exatamente assim. Sim, Hera traiu Zeus, mas porque ela foi enganada, viu? Então esse segredo foi enterrado numa praia, provavelmente lá na Grécia, já que Mateo morou anos por lá, e foi encontrado pelo interlocutor. Tudo foi uma armação de Hefesto e de Hades e, claro, que Zeus foi bem escroto nessa história toda. Ele matou o pobre Matheus, filho de Hefesto, para ficar com a aeromoça Helena! Assim, o deus dos ferreiros montou um disfarce para Henrique, outro filho dele, e assim ele passou uma noite de amor com Hera. Bem, Helena engravidou de Zeus e Hera de Henrique e anos depois temos Lucas, filho do rei dos céus, Laura, filha de Henrique, e um terceiro filho de Hefesto. Lucas apaixona-se por Laura e vice-versa, mas Laura era tão bonita que conquistou o filho de Hefesto mais jovem. Nesse meio tempo Zeus descobre a traição e seu fruto. Enciumado, o garoto promete ajudar o pai a acabar com a vida de Laura, mas no fim se arrepende e morre no lugar desta. Após a tragédia com seu amado, Laura se mata, porém convence Zeus a esquecer sua ideia de vingança.
– É muita tragédia para uma cabecinha só, não? – Observou Ben. – Já estou quase sentindo falta de ar de novo. - Brincou.
– Mateo de Ophiuchus era um gênio. Nunca mais teremos alguém parecido. – Profetizou Evangeline.
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"Eu não sou ateu, só não gosto dos dogmas", respondeu Matheus acerca da pergunta de João Paulo. O mais belo membro do "Clube da Igreja" havia perguntado ao seu anfitrião qual era sua religião. Isso tudo se configurava nos pensamentos de Martina, que era tanto a primeira quanto a terceira pessoa. A loira ainda conseguiu escutar uns burburinhos em sua casa, burburinhos estes que se assemelhavam às vozes de sua mãe e sua avó. Porém, naquele instante, nada seria capaz de lhe tirar daquele transe. Em seguida, Martina vira o futuro astro do rock tocando, em sua harpa, uma das canções que aprendera na Grécia. Era Kai Ti Den Kano, de Stratos Dionysiou, sabia Martina.
– E esta foi mais uma apresentação de Mateo de Ophiuchus, o poeta grego. – Disse Mateo aos demais.
– E, como sempre, você fez minha serpente subir. - Respondeu Bidu, que foi chamado de Bidu de Esparta por Mateo. Os outros, além dos três futuros integrantes da banda, também receberam nomes gregos: eram Benitos de Esparta e Marcilla de Atenas.
– Não consigo entender, ainda, de onde você tirou esse "Ophiuchus". Você não é ariano, Matheus? Era para ser Mateo de Áries. – Observou Pablito, que deixou de lado seu cigarro de maconha para fazer a indagação.
– Ophiuchus é a constelação do zodíaco rejeitada pelos antigos. Isso é tão minha cara, Pablito. O amor homossexual é normal, mas ele é rejeitado pela sociedade. – Desabafou.
Passada essa lembrança, Martina se viu em outro cenário. Vários pais, incluindo os de Mateo, estavam protestando de frente ao "Clube da Igreja". Eles haviam acabado de descobrir que o local não era usado apenas para ensaios de músicas religiosas, mas também para a exaltação do Rock and Roll e uso de drogas e bebidas. Era 29 de agosto de 1977.
–João Paulo, você nunca mais vai pisar em casa! - Dizia uma senhora de uns 50 anos, a quem Martina/Mateo identificou como a mãe de Pablito. A senhora havia saído de São José do Rio Preto, sua terra natal, para participar do linchamento do filho.
– Eu criei meu caçula nos divinos mandamentos e, quando o solto para o mundo, é isso o que acontece! – Lamentou o pai do rapaz.
– E eu achei que você havia se convertido, Matheus! – Gritou o pai do líder do movimento. – O seu boletim estava ótimo... Não vi uma nota sequer abaixo de 9,00.
– Como vocês podem ver, rock e drogas são bons estímulos intelectuais. – Debochou Ophiuchus.
– Eu fui o primeiro a aplaudir a reforma desse estabelecimento, mas, como um pai magoado e bom cristão, voto pela demolição deste clube de depravação. – Sugeriu o pai de Matheus, sugestão esta aprovada por unanimidade pelos presentes.
Instantes depois, Martina visualizou os seis integrantes do finado clube arrumando seus instrumentos e anotações. Todos, exceto Mateo, carregavam um semblante desolado.
– Bem, eu sei que todo mundo está muito desapontado, mas, mas... – Respirou Mateo. – Sempre quisemos formar uma banda de rock e agora é a oportunidade ideal. Então: quem quer formar uma banda comigo? Mas tem que ser nerd, para não falar 'estereotipo'.
– Matheus não vai dar. – Interferiu Bidu. – Eu adoro transar e fumar com você, mas é papai quem banca as minhas regalias e as do Bento. Prefiro mexer com esta ideia depois de formado.
– Galera, a gente pode e deve fazer uma banda! Olha, isso não vai prejudicar o boletim de ninguém. Não é como se fôssemos nos tornar um sucesso nacional de uma hora para outra. É por diversão também. Além disso, não estamos tão errados assim. Se pararmos com as atividades, daremos razão aos nossos acusadores.
– Meu único medo é atrair espíritos viciados em sexo e drogas. – Confessou Kayros.
– Tire essas picuinhas da cabeça, meu amigo... Será incrível! Repertório inédito já temos. São sete músicas maravilhosas, escritas por mim, claro. – Pausou Mateo. – Quem vai querer?
O cenário mudou novamente. Martina/Mateo pode ver a si mesmo junto a Kayros e Pablito num pequeno apartamento. Os três estavam se preparando para uma apresentação, apresentação esta que marcaria oficialmente o início da Estereótipo de Gênio. Matheus usava jaqueta e calças pretas e blusa e bandana magentas. Era 02 de setembro de 1977.
– Vocês realmente acham que isso vai dar certo? – Indagou João Paulo. – Quem vai querer ouvir um grupo de "hereges"?
– Garanto que as pessoas não vão para o bar cuidar de sua vida espiritual. – Respondeu Kayo. – Se bem que, pelo que dizem, alguns médiuns conseguem ver espíritos obsessores na aura dos viciados. Deve ser uma experiência gratificante...
– Vocês estão com as sete partituras? Ah, também preciso da letra de "A Penúltima Odisseia". Não decorei aquele troço todo ainda.
– Primeiro, mulher: ok. Cada Fase: ok. Autorretrato e Metamorfose: ok. Lenda dos Mares e Gangue dos Universitários: ok. – Verificou Kayo. – Ah, e aqui temos a gigantesca "A Penúltima Odisseia". Não se preocupe, Matheus. A sua cover está protegendo nosso maior sucesso. – Completou.
– Cover? – Questionou. – Ah, sim. Uma borboleta rosa e preta, ou melhor, uma borboleta de luto.
– Nossa, será isso um mau presságio? – Quis saber João Paulo.
– Não, não é. É apenas uma fã minha. Mas, por favor, não contem isso para nenhum biógrafo. Isso deverá ser um segredo só nosso. – Completou o vocalista.
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Caminhos do Mar
EspiritualMartina é uma moleca estranha e cheia de traumas. Sem sorte no amor, na ciência e na música, a pobre garota descobre que foi seu maior ídolo em uma vida anterior e que o grande amor de sua vida passada se encontra a sete cidades de seu pai alcoólatr...