O céu banhado de laranja realçava a cor das paredes da casinha. Não era nem muito grande nem muito pequena, mas podia, humildemente, ser chamada no diminutivo pelo modo como aparentava ser aconchegante, característico de casas onde se espera morar uma idosa. As janelas estavam cobertas com cortinas brancas, evitando que a luz interior chamasse muita atenção dos transeuntes que passassem pela rua, o que era, na verdade, bem raro de se acontecer, levando em consideração o tamanho da população daquela cidade e o horário. Além disso, um jardim com flores rasteiras em tons de magenta até um rosa de tão claro, era quase branco, e muitas plantas típicas para chás, como hortelã, manjericão e erva-doce, compartilhavam a mesma terra e espaço na entrada do lugar.
Olhando para a cerca que protegia o jardim e a construção, Florência revivia em sua mente o passado que a fez ir até ali. Vasculhava toda sua memória enquanto ficava parada na frente do portão, que poderia ser facilmente aberto para bater na porta de entrada.
Teria que começar pelo seu "mau comportamento", como seus pais gostavam de chamar o conjunto de ações que culminaram na necessidade de se visitar um especialista, um médico. Iniciava-se com a já conhecida falta de sociabilidade. Era algo que conviveu com Florência desde os primórdios de socialização que teve, como ir à escolinha ou brincar com crianças de seu bairro. No entanto, o ápice foi em sua adolescência, aos seus quinze anos de idade, quando passou a trabalhar no mercado de sua família como atendente. As perguntas "posso ajudar?", "os senhores já foram atendidos?", "buscam algum produto específico?", junto com a prestação de serviços de ajuda a localizar determinada mercadoria ou preço, realizar contas de centavos e aguentar muita conversa fútil resultaram em um estresse acumulativo.
Assim, a gota d'água foi em um dia no final de outubro, quando Florência tinha ainda dezessete anos. Ela perdeu sua paciência com uma mulher e seus muitos filhos. As crianças não respeitavam ninguém no mercado e a mãe não parecia se importar com o caos que estavam fazendo, aproveitando-se da perfeita desculpa de que eram "crianças sendo crianças". Haviam quebrado três frascos de vidro já, um de geleia, outro de pepino em conserva e, o último, de mel. Tudo ocorreria bem se a mulher não tivesse negado pagar os estragos de suas crias. Ao ouvir que ela se recusava o pagamento por usar a justificativa anterior, Florência deixou toda sua compostura de lado e pôs-se a discutir com a senhora. Crianças já, normalmente, irritavam a menina. Nunca tinha se dado bem com alguma e seus pais também não a deram irmãos mais novos para ter uma mínima convivência ou simpatia por elas. Chamava-as tranquilamente de "filhotes de gente" sem nenhum remorso.
No fim, a discussão virou uma gritaria tão alta quanto a dos filhos da mulher e o pai de Florência precisou intervir. Na simples filosofia de que era mais fácil deixar o cliente ter a razão do que perdê-lo, o homem fez com que sua filha parasse com a briga. A menina queria teimar, explicar o tão nítido em seu interior o certo e o errado eram, porém seria uma conversa em vão. Então, ficava quieta e concordava em ações, mas, não, em pensamento. Em sua mente, calada, podia discordar à vontade de opiniões alheias.
Entretanto, não havia sido o primeiro incidente de Florência com um cliente. Já era o quinto no ano e o oitavo na vida. No ano de 1943, Florência estava mais estressada com o trabalho do que jamais havia estado e foi extremamente preciso levá-la em uma consulta. As conversas em casa eram inexistentes. Ninguém a punia nem verbal nem fisicamente. Não tentavam nada para fazê-la compreender a vida ou ter sua vida compreendida. Estava a sua própria mercê de tentar corrigir seus erros. Era como receber um exercício errado em uma tarefa de matemática e não haver professor para explicar como fazê-lo certo. Só havia seus conhecimentos prévios, sua inteligência e força de vontade para resolvê-lo novamente. O máximo que os pais dela comentavam dos incidentes era:
— Você sabe muito bem o que fez de errado hoje — e eles fechariam a porta de seu quarto para ela poder pensar com seus botões as ações do dia.
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Flor no Bosque
General FictionFlorência Montagne, por recomendações médicas em questão a sua saúde afetada por estresse, muda-se para a cidadezinha (fictícia) de Itulanhim, localizada perto de um bosque. A moça passa, então, a morar com uma simpática jovem costureira, Amália Vog...