No fim da tarde de um dia da primeira metade do mês de março, Florência estava lendo um livro novo no Cafofo. Havia se interessado por ele por pura curiosidade e, para seu desgosto, a leitura já estava cansando-a. Isso que começara há apenas alguns minutos e ainda era o início, a página quinze. O arrependimento estava pegando-a até o último fio de cabelo. Era uma linguagem difícil, arcaica, com estruturas complicadas, descrições excessivas da fauna e flora brasileira e muitas palavras indígenas que somente se entendia com o glossário no fim do livro, o qual, ao invés de ajudar e tornar a leitura mais fluida, só servia para a menina empacar de parágrafo em parágrafo para consultar alguma palavra provavelmente em tupi. Iracema de José de Alencar estava sendo seu castigo na Terra. Parte dela implorava para desistir da leitura, procurar algo um pouco mais simples e não tão clássico, entretanto Florência era mais teimosa que seu cérebro autossabotando-a. A premissa do livro soava até que curiosa pelo o que se lembrava das aulas de literatura que teve durante seus anos escolares. Uma indígena e um português apaixonados e daí viria um filho, o qual seria a alegoria de um brasileiro.
Florência tinha muitas críticas a essa alegoria por faltar mais algumas etnias no meio. Inclusive, a qual ela mesma descendia (embora não soubesse a específica). Os negros africanos haviam sido deixados de lado por Alencar nesse romance.
Contudo, Florência estava tentando ignorar esse fato para conseguir, pelo menos, terminar mais de um capítulo hoje sem se frustrar ou enfurecer mais do que já estava acontecendo.
Quando Florência quase se convenceu a jogar o livro pela janela para Amália não ler aquilo — se já não tivesse lido — a costureira apareceu na porta do Cafofo, segurando uma escova de cabelo na mão. A menina se questionava por que a amiga (termo que aprendeu a utilizar sem receios) havia trazido o objeto até ali. O cabelo da mesma já estava arrumado, graças ao curto comprimento que facilitava a manutenção.
Além disso, desde o dia que encontrara o Lago dos Cágados, Florência se sentia inquieta ao lado de Amália. Não havia contado nada a outra por motivos óbvios que buzinavam no fundo de sua mente, não a deixando esquecer do "crime" que cometera. Esperava estar disfarçando bem esse fato, já que, frequentemente, voltava ao Lago para olhar os peixes nadando e as aves voando e cantando aos arredores.
Não permitiria que suas emoções a traíssem. Nunca fora emocionada e não era agora que demonstraria qualquer sinal de estranhamento e que denunciasse o ocorrido. Se Amália fosse saber disso, seria no tempo dela descobrir. Não viria as palavras da boca de Florência. Isso ela já havia decidido e, como uma boa teimosa, nada tiraria essa ideia de sua cabeça.
— Oi, Flor, posso te fazer um pedido? — Amália perguntou. Sua voz garantia que a máscara que a menina usava estava intacta em seu rosto.
— Diga — foi um pouco mais seca que ela esperava a resposta, porém, a outra não expressou nenhum descontentamento. Já estava acostumada com o jeito Florência de ser.
— Você tem um cabelo muito longo e muito bonito, sabia disso?
Embora o elogio fosse sincero, a menina aguardava o interesse que seria seguido por ele.
— Ele é armado — uma resposta tanto por Florência não saber reagir a elogios sem se autodepreciar quanto pela impaciência de esperar o pedido. Ela não via cabelos armados como um sinônimo de beleza. Cabelos definidos pareciam mais com essa ideia.
— Não acho que seja armado de propósito. Ele é meio ondulado, não? Não é liso, mas também não tem ondas óbvias, somente suaves. Não sei como te ajudaria a deixá-lo menos volumoso, se é isso que se refere ao chamá-lo de "armado". Eu mal tenho cabelo e ele ainda por cima é liso de tudo.
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Flor no Bosque
General FictionFlorência Montagne, por recomendações médicas em questão a sua saúde afetada por estresse, muda-se para a cidadezinha (fictícia) de Itulanhim, localizada perto de um bosque. A moça passa, então, a morar com uma simpática jovem costureira, Amália Vog...