Capítulo 6: O Lago dos Cágados

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O feriado de Carnaval se aproximou, ou seja, Florência teve uma incrível abundância de tempo livre para ter seus cabelos bagunçados pela brisa do Bosque e sua mente renovada com sensações mais agradáveis. Visitou-o mais algumas cinco vezes, porém, uma em particular, precisamente, a última, a chamou mais atenção.

Nesse dia, realmente entrou no Bosque. Antes, ficava só em uma parte que o caminho para a saída era de fácil acesso e caminhada mínima. Leu um pouco sobre um tapete velho qualquer de Amália (que pouco se importava se sujasse de terra) e observou passarinhos que voassem por ali perto.

Aliás, o motivo de ter ido ao interior do Bosque foi exatamente esse: um tucano.

Florência nunca tinha visto um tucano tão próximo de si. Quando ele passou por ela fazendo seu estranho barulhinho "crrra-crrra-crrra" — que a lembrou o brinquedo de sapo de madeira reco-reco — não pode deixar de segui-lo.

Amália estava bem mais tranquila em relação a esses passeios solitários de Florência. Ela só não sabia que essa específica vez, o episódio do tucano, havia acontecido. Elas tinham combinado que a menina só ficaria na parte "segura" do Bosque e, se encontrasse um lago, não era para ela estar ali. Embora o local oferecesse quase nenhum perigo animal ou selvagem, o perigo estava no ser humano. Nunca se sabia se haveria alguém ali, na sombra, escondido atrás de um carvalho; quase improvável, visto que Itulanhim era minúscula e todos eram conhecidos ou parentes, mas todo cuidado era pouco.

Felizmente, os únicos perigos que Florência tinha visto eram aranhas surpreendentemente grandes, marimbondos, taturanas e calangos. Levou somente um sustinho quando os viu, porém era raro e foi uma vez ou outra. Na do tucano, não tinha passado um sufoco desse tipo.

Ela mesma mais tarde veria se dizendo que era uma péssima ideia sair correndo atrás de uma ave sem saber seu rumo. O animal sabia onde voava, Florência não. Entretanto, ainda fez essa leve desobediência ao acordo de Amália e pedia com todas as forças em silêncio que não se arrependesse de ter seguido o tucano.

Enquanto corria, notava os feixes de luz que a iluminavam esporadicamente por entre as folhagens quietas daquela tarde de verão. O que ouvia ao redor eram somente seus passos, que pisavam nas folhas secas e faziam um barulho agradabilíssimo aos ouvidos de crocante, e, claro, o som do tucano. O cabelo dela batia em seu rosto em horas inadequadas e chegava até mesmo senti-lo em sua boca. O colar de pérolas batia em seu peito como um metrônomo marcando as batias de uma música.

O Bosque a engolia sutilmente. Os metros deixados para trás tornavam-se mais verdes escuros. As árvores estavam se assemelhando mais, deixando a singularidade das plantas do começo do caminho e fazendo-as ter o mesmo aspecto: tronco grosso marrom e copa cheia verde. 

O Bosque a abraçava. Florência não temia mais tanto estar correndo com os olhos voltados para cima, focando somente no pássaro preto de enorme bico alaranjado e pezinhos azulados. Ela continuou mesmo que suas pernas estivessem já ficando cansadas e ela mesma também de ter que segurar a saia para não tropeçar e se estraçalhar no chão, o que a impedia de correr com toda sua potência. Estava mantendo o ritmo bem e o tucano até parecia ciente que estava sendo seguido por uma admiradora e, não, ameaça, pelo modo que voava em uma velocidade constante.

Até que Florência piscou e olhou para o chão, onde quase tropeçou em uma pedra.

E perdeu o tucano de vista.

Ela parou de correr abruptamente, sentindo escorregar a sola dos sapatos na grama. Seu coração batia fortemente em seu peito e fazia seu sangue latejar em seus ouvidos. Algumas gotas de suor escorreram por seu rosto quando voltou a cabeça para cima em busca do pássaro. Os olhos de Florência passavam rápidos pelas copas as árvores, sua íris indo em todas as direções e levando cumprimentos não muito amigáveis dos raios solares que às vezes pegavam diretamente nos olhos.

Nada.

Não via um tucano. Não havia um movimento nas folhas. O animal havia sumido sem deixar nenhum rastro. Se Florência não tivesse o perseguido por tantos metros, poderia até dizer que ele foi uma ilusão. Contudo, ele fora real e estava voando na frente dela até um minuto atrás.

"Uma ideia idiota" — Florência se repreendia. — "Espantei o tucano. Uma péssima observadora de pássaros que sou. Onde já se viu um observador sair correndo atrás do objeto a ser observado? Isso é perseguição, não observação".

Além de ter perdido o tucano, tinha se perdido também. Florência não fazia ideia de onde estava. Tudo era tão igual. Árvores a sua esquerda e direita. Grama por mais alguns metros à frente. Um calor que piorou pelo exercício físico; talvez mais de 40°C.

Olhou para frente e para trás e chegou a conclusão de que só a restava continuar a andar o que sobrou do caminho. Poderia muito bem voltar, porém preferiu seguir. Já estava perdida, não havia o que fazer. Além disso, se retornasse, não descobriria o que havia a sua frente. 

A curiosidade andava cochichando muito no ouvido de Florência ultimamente. Não era uma boa coisa. Se continuasse a ouvi-la sempre, não imaginava as consequências que isso a traria. Neste momento, andar até o fim do Bosque não parecia perigoso, visto que Florência já sabia o que poderia a aguardar (uma cobra ou inseto venenoso). Todavia, a pitada do que a sobrava de consciência fazia a menina ter um pouco de juízo e noção de que estava ciente em desrespeitar o combinado com Amália.

Florência também não entendia — mesmo se tentasse — a tamanha preocupação da costureira. Primeiro não a deixava ir sozinha, agora que Florência pode, não deveria ir ao interior do Bosque e, se ela encontrar um lago, era realmente para não estar lá. Tudo isso era muito suspeito.

Mesmo assim, ela tomou seu tempo para observar o famoso e temido núcleo do Bosque. Era bonito, mesmo aos seus olhos já acostumados a ver verde e mais verde. Quem passasse por ali pela primeira vez se encantaria caso não tivesse claustrofobia. Não que as árvores fossem muito próximas umas das outras, mas eram tantas na vista que dava essa sensação de encurralamento. Entretanto, Florência só se via ali quase como uma jovem planta, parada tomando um pouco de sol e vento.

De repente, de soslaio, algo chamou atenção dela. Não era um animal na vegetação nem uma árvore específica e, sim, um reflexo, como o de um espelho.

Seria estranho demais encontrar um espelho em um bosque, então a menina ficou sutilmente mais aliviada quando viu que era um lago que a vegetação revelara.

Não tão aliviada, na verdade. Ela não deveria estar ali de maneira alguma.

O lago era um grande círculo, o que, segundo geógrafos, teria o nome correto de "lagoa", pois diziam que lagos são maiores e, mesmo que a lagoa tivesse um tamanho incomum para uma, ainda assim não era um lago. Essas informações saíram de um livro que Florência pegara só por curiosidade na biblioteca de Amália.

Havia algumas tartarugas — ou melhor, cágados, porque tartarugas viviam no mar e, embora não fosse um lago e, sim, uma lagoa, não era mar de nenhuma forma (outra informação tirada de um outro livro sobre animais aquáticos) — nadando a uns dez metros de distância dela. Tinham uma aparência bem pacífica e não se importaram nem um pouco com a turista.

A água do popular chamado de lago era surpreendentemente cristalina. Apesar de haver uma folha ali e aqui, não tirava esse aspecto brilhante que refletia tão bem a luz do sol. Florência duvidava que tivesse argila perto da margem ou do fundo do lago. Via até seres pequeninos se movendo rapidamente (peixes obviamente, mas Florência desejava bastante que fossem fadas). Não era um pensamento adequado para a situação tão calma, porém ela lembrou que fazia uns bons dois meses que não comia peixe. Pescar seria uma boa atividade para convidar Amália a fazer, contudo, recordou-se de que a costureira não podia nem sonhar que Florência estava ali. Se tivesse que pescar, teria de ser sozinha e, se Amália perguntasse onde havia arranjado o peixe, diria que foi no mercado. Pouco convincente, mas realista.

Não havia mais nada para ela fazer ali, sinceramente. Ela já estava pensando em voltar para a casa se Amália querendo muito comer um lanchinho.

Não foi difícil encontrar onde teria que retornar, embora tivesse entrado em uma área tecnicamente proibida segundo ordens superiores. Estava mais acostumada ao Bosque e o caminho reto a facilitou a achar a saída.

Deu uma última olhada para as árvores antes de seguir para a rua. O dia quente continuava silencioso como de se esperar em uma cidade tão pequena. Então, ela jogou os cabelos para cobrir o rosto do sol forte e partiu.

Flor no BosqueOnde histórias criam vida. Descubra agora