A Carta

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V a i    c h e g a r    a    s u a    v e z   .

  — AH! - acordou com um espanto, Cesar, se sentando na cama. Respirava ofegantemente, indo e vindo profundamente. Sua cabeça doía, havia caído, não? Sua visão estava escura e turva, paralisada, apenas olhando para sua frente. Estava naquele escuro novamente e realmente, achou que tinha morrido, mas parece que ainda, também, não foi dessa vez. Realmente, está sendo um dia cheio de… mortes. - Ah! Ah! Ah!...

  Regularizava sua respiração enquanto se ajeitava na maca hospitalar, com mais conforto. Suava frio, sentia as gotas deslizarem por sua nuca e seu coração palpitar rapidamente, sendo acompanhado pelas batidas que a máquina ao seu lado soava, mas não a encarou. Olhava para frente, tinha medo de olhar para os lados e estar naquele mesmo quarto e sozinho. Seus sentidos voltavam ao normal lentamente; escutou os pássaros da manhã, as conversas nos corredores, as máquinas do hospital, que estavam bastante aceleradas por acaso e sentiu, além dos tubos de soro em suas veias, uma máscara de oxigênio presa no seu rosto, que Cesar retirou sem muita demora. Respirava mais uma vez, agora sentindo o ar fresco que era extraído da janela mais a frente e, além de tudo, tinha aquele mesmo cheiro da sopa. Agradável e apetitoso, o que ajudava Cesar a se acalmar e voltar a raciocinar. Olhou para um lado, olhou para o outro…

   Estava sozinho. Joui não estava ali.

  Como um flash, se lembrou da briga que teve e sentiu seu peito apertar. Encarava, perplexo, o lugar. Via a cadeira onde era para ele estar intacta, como se nunca tivessem encostado nela depois que ele… foi embora. Não sabia exatamente como reagir, afinal, estava sozinho. E quer saber? Pouco importava, afinal, sempre esteve durante esses cinco anos, quando ele foi embora. Sim, ele foi embora. "E provavelmente nunca mais irá voltar", pensou Cesar.
  E bem, não havia Joui que pudesse lhe perguntar se estava tudo bem, não havia flores com seu nome escrito e não havia abraços. Não havia conforto, não havia risadas… Não havia paixão, não havia sentimentos, não havia vida. Tirou de si mesmo tudo o que tinha, sem mais, nem menos. Afinal, ele foi uma das únicas pessoas em quem poderia confiar, não importa quando ou como. E se conseguiu o magoar, iria se culpar mesmo se estivesse a sete palmos abaixo da terra. Era ridículo como podia se descontrolar as vezes e era mais ridículo ainda como tudo piorou. Se tinha alguém, não tem mais.
  Mas não é nenhuma novidade para Cesar. Colocava em sua cabeça, repetidas vezes que "Eu não me importo. Eu não me importo. Eu não me importo…". O mesmo já esteve sozinho muitas vezes, e sabia que, um dia, estaria novamente. Não se podia mais confiar nas pessoas ao seu redor, então sempre se manteve alerta a esses tipos de situações. Teve uma infância solitária, tendo apenas Bruno e… ele, como uma companhia. Mas, tá tudo bem! Cesar ainda tem o Thiago, o Arthur e o próprio Bruno! Então, não seria tão ruim perder ele, né?...

  Conformado, engoliu tudo o que sentia a força; queria esquecer de que, um dia, foi amigo dele. Pegou a sopa e a colocou no seu colo, ainda quente, quase queimando o mesmo. Mas resistiu. Pegou a simpática colher de plástico e balançava dentro do alimento, delicadamente, o misturando para que esfriasse mais rápido. Se lembrou das vezes em que sua mãe preparava a mesma quando estava doente, ou quando parou no hospital uma vez e teve que tomá-la, ou… Quando Joui sofreu aquele acidente e precisava de sua companhia.
  Acolhia uma pequena porção da sopa no talher e o guiou até sua boca. O gosto era leve e suave, quase que como o vento, sabores perceptíveis mas que não eram fortes. É uma ótima maneira de esquecer do gosto do sangue. Se lembrava vagamente de quando tinha apenas catorze anos estava sentado ao lado da maca do Jouki, o observando com inúmeras faixas e esparadrapos, todos completamente ensanguentados, tampando a bochecha direita do mesmo. O cheiro da mesma sopa era memorável, o que era a única coisa que podia acalmar o pequeno Cohen, que chorava em meio a tanta culpa que sentia por ter, sem querer, ferido seu melhor amigo. E depois que ele acordou para dizer que o havia perdoado, se sentiu acolhido como nunca foi. Diria sim que ainda se sente um pouco culpado por ter feito aquela cicatriz em formato de "X" que o acompanha até hoje, mas ao sentir o gosto dessa sopa, soube o quanto é gostoso tomar com alguém do seu lado. Quer dizer, não tinha ninguém ali. Largou a sopa pela metade e a guardou novamente. Nem estava com fome, mesmo.
  Por um momento, olhou para a janela mais a frente, que estava aberta, lhe apresentando o amanhecer de um novo dia. Um novo dia, uma nova rotina, era o que se costumava dizer para si mesmo toda manhã. Nela, tinha um fio que a atravessava pela parte de fora, e não fazia ideia da sua origem, mas havia dois pássaros azuis nele que cantarolavam melodiosamente. Nunca foi de os observar por perto, mas Cesar percebeu que apenas um deles cantava em alto tom. O outro, que parecia cansado, voou para longe. E quando estava prestes a se levantar para se esquecer de tudo, viu ao seu lado oposto, numa escrivaninha, uma carta. Quer dizer, outra, já que a de Elizabeth estava abaixo da recém-colocada. Era de papel delicado, tanto que, quando a pegou, cortou seu dedo por acidente em uma das bordas. O cheiro meigo que a mesma repelia, e todo o seu formato perfeitamente retangular, a simplicidade… E quando a abriu, reconheceu a caligrafia. 

 " Bom dia, Cesar! Dormiu bem? Espero que sim :)

  A Senhorita Liz me ajudou a escrever essa carta, já que ela foi a primeira a saber que você… Enfim. Você sabe que eu ainda escrevo poesia, então por sorte, eu estava com a minha caneta preferida no bolso! Que é do mesmo modelo que aquela que você me deu quando estávamos no fundamental ainda, se lembra?

  Me desculpa por eu desviar do assunto desse jeito, é porque eu realmente não sou muito bom escrevendo cartas sem querer rasgar e começar de novo… Mas, tudo bem! Eu vou conseguir!
  Me perdoa também pela nossa discussão e por eu ter te chamado de "maluco" e tals… Eu estava cansado e estressado, e sem querer descontei em você :(
  Eu não entendi quando você começou a dizer que você ia morrer e eu fiquei assustado, porque você tinha fugido do hospital, mas eu não acho que você estava transtornado… Eu senti um pouco de verdade no que você disse. Mas como assim, morrer? Os médicos descobriram o que houve com você? Por favor, me atualize o mais rápido possível!
  Também soube que você quebrou alguns equipamentos e a flor que eu te dei, e que te deram uma droga calmante para você não acordar estressado de novo… Eu paguei pelos equipamentos, não se preocupe! Mas espero que a Bea não descubra, senão ela vai ficar bastante chateada :(
  Esse papel é muito pequeno! Mas, enfim, fique bem! Não fuja de novo, por favor, deixe os médicos cuidar de você! Eu ainda tô preocupado e não quero te incomodar, mas qualquer coisa é só me ligar, ok? Me desculpa, denovo. Você ainda é o meu melhor amigo e eu faria de tudo para te ver bem.

Ass: Joui J.
Fique bem! - Elizabeth W. "

… Ping … 

… Ping …

  Escutou o suave soar do gotejar que suas lágrimas realizavam em cima da delicada tinta do papel, que borrava por ser recém-escrita. Estava chorando; porções se formavam em seu olhar estático e sua mão, que segurava a carta de Joui, tremia em meio a tanta contestação.
  Era mentira: Era sim, uma novidade para Cesar tudo isso; Cesar sim, se importava; Apesar de não ser um cara muito bem acompanhado, a briga com Joui foi um enorme soco no estômago que revirou tudo o que se tinha em sã consciência. E, no final de tudo, perder Joui seria pior do que a morte. 

  Cesar sempre teve medo disso.

    Amassava a carta levemente, enquanto abraçava seus joelhos e agarrava seus cabelos. Chorava sem parar, não sabia quando parar. Sentia a sua cabeça pesada, ficando mais leve a cada gota que caía sob aquele lençol branco. Uma dor, repentina, deslizou pelos seus braços e pernas, sem querer reparar muito nisso. Era como cortes, que se abriam, dando brechas para que esse corpo desgraçado pudesse respirar. Ele precisava respirar, depois de tanto tempo de sufoco.
  E antes que pudesse perceber, os pássaros já tinham ido embora e a sopa já tinha se resfriado. O gosto de sangue era notável, mas mais leve que anteriormente. Cesar chorava como se ainda tivesse catorze anos, enquanto via seu melhor amigo beirar a morte por sua culpa; como se ainda visse seu pai partir para os Estados Unidos pela última vez; como se ainda visse sua mãe ser enterrada. Como se ainda, estivesse vivo.

  Após longos minutos de apertos, amassos, carinhos que se permitia se dar de leve e muitas dores despejadas, sentiu seu corpo arder. Arder, muito.
  Quando se soltou para que pudesse ver seus braços, percebeu; cortes, pequenos mas não tão finos, eram nem rasos mas também não eram fundos. Ardia como as chamas, não demorou muito para perceber que estava repleto desses mesmos ferimentos em suas pernas, indo até suas coxas. Não se lembrava de ter acordado dessa maneira, muito menos de ter se ferido, como que pode? E na ponta de seu dedo, onde se cortou por acidente na folha de papel…

Havia um broto.

43 Mil Horas - AU Joesar (#JoesarWeek)Onde histórias criam vida. Descubra agora