Conversa de botequim

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16 de Novembro de 66,

Depois da apresentação de Maria Bethânia posso afirmar que ficamos próximos e que de vez em quando conversávamos, o assunto de destaque da maioria dessas conversas sendo a música.

Mas, acredito eu que realmente só ficamos mais íntimos lá pelo outono de 66, após o lançamento de meu primeiro disco: "Chico Buarque de Hollanda" , Posso afirmar que o Lp acabou caindo na boca do povo, e logo conseguia escutar moças cantarolando "A Banda" pelas ruas, de vez em quando, nos momentos em que passeava com meu Mustang vermelho pelo centro de São Paulo. Via algum grupo de pessoas reunidas em frente de uma loja de discos a procura de um dos exemplares com a capa com fotos e músicas contrastantes comparadas a outros da época.

A algum tempo tive a alegria de conhecer alguns dos cantores que mais admiro. Para contextualizar, meu pai, Sérgio Buarque de Hollanda, acabou conhecendo Vinícius de Moraes (o qual era bastante próximo de Tom Jobim) ainda era jovem o suficiente, diria até mesmo ingênuo. O poeta conhecera-me cedo. Talvez, tenha tido uma insegurança com o modo em que eu mesmo tentava dialogar, então na maioria das vezes permanecia calado. Hoje em dia temos o que reconheço como uma amizade, ou, apenas parceria direcionada ao trabalho. Fora igual a vez em que conheci Antônio Carlos Jobim.

Apenas digo isso pois através de Maria Bethânia surgira o rapaz que escolhera este nome referindo-se ao clássico de Nelson Gonçalves. De fios castanhos cor de mel em seu couro cabeludo, cabelo armado, curto e cacheado feito pequenas ondas em confusão. Seu cabelo ia contra o vento, sem lenço e sem documento. Seus traços eram marcantes, a sombrancelha grossa fazia moldura envolvendo seus olhos, que brilhavam feito cristais quando atingidos pelo sol. Posso afirmar que tudo em Caetano era relativamente marcante, desde os pés até a cabeça. Poderia não ter tanta intimidade com o baiano quanto tinha com sua irmã mas, recentemente encontrei-me com coragem o suficiente para chamar Bethânia para beber comigo e com Jobim, e durante o contive não posso negar que esperei que ela indicasse que levaria seu irmão,o que felizmente se pois a acontecer.

Enquanto me arrumo para então sair de casa meu telefone repentinamente toca:

- Já tá pronto Chico? Eu e Caetano já tamo saindo de casa.

- Tô quase Bethânia.

- Onde você disse que era o bar?

- É só virar a esquina do hotel onde vocês estão,não tem erro.

- Te vejo lá então! Até daqui a pouco.

Bethânia desliga e então me olho uma última vez no espelho e saio, e quando desço do elevador me lembro que Jobim não gosta de atrasos, depois desse pensamento intruso me encontro correndo até o carro. Passo a marcha e sigo pela paulista até chegar ao bar que costumamos frequentar, estaciono logo de frente e pela grande porta do estabelecimento já consigo ver Jobim estendido sobre a mesa conversando com os dois baianos:

- Finalmente em Buarque!- Tom fala em um tom quase que bêbado,com certeza ele já se adiantou quanto a bebida.

- Oi Chico!- Bethânia e Caetano falam em união, posso ver os olhos do baiano vindo em direção aos meus em alguns momentos o que acaba nos deixando meio constrangidos.

Durante umas 3 horas nos ficamos ali sentados na mesa e como bom tricolor carioca que sou pedi para o garçom ligar o radinho do balcão:

- Já vou ter que ir indo, amanhã de manhã ainda tenho uma apresentação pra fazer- Bethânia fala, seu tom é cansado, talvez um pouco afetado pela bebida.

- Oxi! Já Betânia? Fique só mais um tiquinho- Caetano fala, não posso negar que achei uma atitude fofa da parte dele, durante a noite a gente conversou muito, Tom aparentemente ficou meio cismado com ele mas eu adorei sua presença, realmente estava desejando que ele ficasse um pouco mais.

- Fique Caetano, tu não é nem besta de não saber onde a gente tá hospedado, Já tô indo pessoal, até. -antes de sair ela se vira em minha direção e fala num tom silencioso garantindo que só eu fosse escutar- Você cuide dele viu Chico!

E assim ela sai nos deixando sozinhos com aquele jogo do Fluminense, nesse ponto da noite Tom já se encontrava dormindo em cima da mesa, o que deixou a conversa entre nos muito mais interessante, digamos que sem o olhar de negação de Jobim o baiano se soltava muito mais. Ficamos nesse bem bom por mais algum tempo até Tom acordar e o jogo acabar:

- O Buarque eu estou indo embora, se eu beber mais uma gota eu entro em coma. Tchau pra você e pro seu amiguinho. - não sei o que se passava na cabeça dele, desde que nós conhecemos nunca o vi como uma pessoa rude,mas algo em Caetano o incomodava:

- Ei Chico... vamo pra outro lugar vai - o baiano diz bem lentamente,seu sotaque e o efeito da bebida juntos resultavam em uma voz puxada e bem devagar.

- Hmm, tá bom, se você quer.

Tenho que afirmar que essa era a coisa que menos esperava do baiano, fomos andando até uma pracinha que ficava perto do bar. Sempre fui muito forte com bebidas, tenho que beber muito antes de me encontrar bêbado mas parecia que Caetano era o oposto, podia contar nos dedos a quantidade de garrafas que ele bebeu e mesmo assim ele mal conseguia formular uma frase coerente por conta da cerveja.

Quando chegamos na praça fomos nos sentando num banquinho meio tosco e ficamos por lá mesmo, o moreno continuava a beber uma garrafa de cerveja que foi incapaz de terminar no bar e enquanto conversamos em meio a palavras sem sentido o cacheado falou:

- Cê quer ver uma coisa Chico?

Antes que eu possa responder ele se levantou do banco e se pois a andar até uma árvore próxima, pelo meu breve conhecimento sobre plantas eu podia dizer que era uma mangueira, o baiano vai cuidadosamente colocando pé por pé em movimentos metódicos que antes que eu possa se quer me preocupar ele já se encontra no topo de um galho. Olhando para baixo e erguendo os braços para cima ele grita:

- EU SOU O REI DO MUNDO!- logo as palavras se transformam em gargalhadas que mesmo distantes nos juntam, juro que não saberia descrever o que senti nesse momento,mas eu definitivamente nunca havia sentido aquilo.

Os olhos do baiano me olhando de cima da mangueira, a garrafa de cerveja jogada em um canto,o frio agradável da noite paulista, o grito de gol preso na garganta. Eu me sentia intocável era como se por um momento eu esquecesse das composições, da negação de Tom e de que no mês seguinte os irmãos seriam obrigados a voltar para Bahia. Enquanto tentava organizar os pensamentos na cabeça Caetano desce da árvore entre risos sutis:

- Eu e Bethânia, a gente costumava fazer muito isso quando éramos pequenos...

Antes dele completar a frase o sino da igrejinha lá perto toca, marcando em seus ponteiros que mesmo a distância podem ser claramente vistos, a meia-noite:

- Acho que eu deveria voltar, minha irmã pode ficar preucupada...- a voz dele que antes era cheia de vida se encontra melancólica, não nego que se estivesse mais bêbado eu o abraçaria para espantar esse sentimento.

- Tudo bem, eu te levo de volta.

- Não precisa Chico,eu sei o...

- Sem mais Caetano,eu te levo.

Então caminhamos juntos de volta ao bar, é claro que o moreno se encontrava muito bêbado,de vez enquanto ao caminhar ao meu lado ele tropeçava e eu tinha que segura-lo, confesso que soltava gargalhadas quando isso acontecia. Enfim chegamos, eu e ele entramos no Mustang e fomos primeiro em direção ao hotel em que os irmãos estavam hospedados, ele desceu do carro e com um simples aceno de mão se foi por entre as portas do hotel, antes de partir acho que fiquei mais alguns segundos esperando um adeus mais adequado porém, logo liguei o carro e também me fui entre a noite paulista.

O caminho até em casa foi o mais solitário, liguei o rádio para afastar esse sentimento mas, acredito que a programação da madrugada é a mais melancólica e temo que não funcionou. Por aqueles 20 minutos o mundo era só a brisa que sacudia meus cabelos pela janela do carro, uma música qualquer do Noel Rosa e a memória daqueles olhos castanhos.






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