Marinheiro só

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05 de janeiro de 1970,

Todo dia eu faço tudo sempre igual, quando durmo com Marieta, o que antes era comum e hoje quase se torna raridade, eu me levanto cedo. As vezes caminho pelas vielas estreitas de Roma a procura de algo para me surpreender, coisa que raramente encontro, me sento em uma mesa de um café qualquer e leio um jornal. Ao voltar minha esposa já está de pé, nos meus dias de bom humor a beijo e dou bom dia, me desculpo por ter saído tão cedo e a ajudo com Sílvia. Depois passo o dia naquele quarto escuro aos fundos do apartamento. Tal quarto era uma prisão para minha alma e eu me encontrava em total cárcere opcional.

Continha-me as composições, a poesia e a mim mesmo. Sentia muito, principalmente saudade e vontade de se encontrar. Me tinha ao relento de minha alma e procurava abrigo na escrita, no desespero de meu próprio ser achava palavras coerentes, adjetivos carnudos e verbos tão esguios que cortam. Procurava não me contaminar com ideias e conceitos de outros autores mas não me contive ao ler um exemplar de " Mar Morto" que eu encontrei em um brechó, em uma de minha buscas matinais pelo novo intocado. A verdade é que sou um Guma navegando em um oceano de verdades que não conseguem ser absorvidas por serem indecifráveis. Até os marinheiros mais velhos no cais não sabem tudo sobre o mar.

Em meus momentos de completa loucura choro palavras em cima do papel, manchado por meu sofrimento, nos se sanidade falo com Marieta, sinto pena e acabo chorando por ela, chorando por nos. Volto ao quarto, ainda com falta de nitidez nós olhos, efeito esse causado pelas lágrimas. Vejo as pilhas de caixa de cigarro se formando em cima da mesa, vejo os trejeitos de minha raiva no chão se materializando em forma de uma garrafa de vidro quebrada. São nesses dias de "quem sou eu" que eu esboço cartas, que em sua maioria que nunca foram enviadas e nem tão cedo serão.

Suspiro, meus olhos acompanham alguns papéis em cima da mesa, um deles se encontra particularmente amassado. Me recordo de ontem, estava bêbado sem saber o que fazer, como sempre, me sentei e comecei a escrever. Da canetas só saiam palavras direcionadas a Caetano, entrei em desespero, só pensava nele. Seguro o papel entre meus dedos:

" As vezes sinto algo digamos... Inédito ao ouvir certos nomes, principalmente o seu. É um arrepio, um nervosismo que não sei descrever. "

Vou abaixando os olhos, acompanhando o texto e vejo algo escrito no canto da folha, algo de que eu não me lembro ao certo:

" Acho que enquanto perdido em mim, eu vivo de Caetano."

Guardo em especial esse papel no bolso, os outros ainda estão lá, jogados em cima da mesa até que o vento os derrubem e sejam perdidos por aí, todas aquelas lindas palavras em completo vão.

Saio do quarto, as lágrimas secam e em mim só fica a silhueta de Caetano. Antes de dar mais que um passo a frente Marieta me para, com um semblante mais que furioso:

- Posso saber o que o senhor tanto faz nesse quarto? - seu tom é ríspido, mais que o normal.

- Escrevo, nunca reparou nos papéis jogados por aí? - Falei já irritado, sabendo que iria levar uma chamada. Mas não devia ter falado, não mesmo.

- Eu não sou tão idiota como você pensa. - sua voz vai aumentando drasticamente com o decorrer da frase.

- Em algum momento eu te chamei de idiota, Marieta? Se sim foi em alguma das suas alucinações.

- Ok Francisco, eu já entendi. - antes de continuar ela respira abaixando o seu tom de voz em uma longa pausa- eu já entendi. Só saiba que você não é o único que sente.

- E você não é a única que pensa. - murmuro pensando que ela não escutaria, assim que termino ela abre os olhos atentos e desacreditados.

- Pensar no que? Nessa merda de exílio? Nessa confusão toda? Você não faz nada, parece até um vagabundo, só sabe escrever essas cartas toscas para o Caetano. Eu sou sua mulher e mesmo assim você escolhe ele. Sabe que eu tenho sentimentos, sabe que eu preciso de algum acolhimento e mesmo assim você fecha os olhos e não faz nada! - nesse ponto ela já grita, no final da frase ela da um grande ênfase no "nada". Foi assim que soube que não poderia ficar calado.

- Eu tenho meus motivos assim como você tem os seus, não vem fazer escândalo a essa hora.

- Ah, agora dizer o que eu sinto é fazer escândalo né?

- Nesse caso é sim. - me viro na tentativa de voltar ao quarto, de voltar pro meu porto. Marieta me assustava ela ria freneticamente.

- Você sempre é o certo de tudo, o inteligente. Sempre tem razão das coisas, conhecimento de tudo. É SEMPRE ASSIM NAO É?

- NÃO FOI VOCÊ QUE TEVE MÚSICAS VETADAS PORRA, NÃO É VOCÊ QUE É AMEAÇADO POR ESSA CARALHA DE GOVERNO, NÃO É VOCÊ QUE AGUENTA OS MILITARES NO SEU OUVIDO, NÃO SÃO OS SEUS AMIGOS QUE ESTÃO SENDO MORTOS, TORTURADOS E ESTUPRADOS. NÃO FUI EU QUEM QUIS VIR PARA ESSA PORRA DESSE PAÍS E VOCÊ SABE BEM.

Ela vem balbuciando palavras altas, não tento entender, não quero entender. Pego um casaco jogado na bancada da cozinha e saio sem olhar para trás. Eu desisti de tentar. Senti um nó na garganta, odeio discutir, odeio sentir algo por outras pessoas que não sejam Marieta. Odeio sentir.


Preferiria morrer doçamente no mar a viver essa vida deplorável em terra, quero sentir o balançar o saveiro ao invés de raiva e tristeza. Só quero pertencer a algum porto.



Nota do autor:

Já vou me desculpando pelo o atraso pois esse capítulo era para ser postado dia 7, porem esse foi justamente o dia do meu aniversário e eu decidi me dar férias até hj. Quem falar feliz aniversário atrasado pra mim sobre no meu top 10 leitores favoritos.

É isso e VAI CORINTHIANS!!

















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