Capítulo 2 - Heitor

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HEITOR FALCÃO

"(...) Há uma estrada de pedra que passa na fazenda.

É teu destino, é tua senda.

Onde nascem tuas canções.

As tempestades do tempo que marcam tua história

Fogo que queima na memória 

E acende os corações.(...)"

 

(Jeito de mato – Paula Fernandes – composição: Mauricio Santini)

Eu estava sentado sobre o muro baixo que rodeava a varanda, encostado em uma coluna, olhando a paisagem que se descortinava diante de mim. Era a penúltima sexta-feira do mês de janeiro, e a noite estava quente, com uma leve brisa, o céu cheio de estrelas prenunciando um dia seguinte claro e reluzente como os daquela semana toda.

Uma sensação plena de paz me envolvia, enquanto meus olhos vagavam preguiçosos sobre os contornos e relevos sombreados pela noite e iluminados pela lua e pelas luzes espalhadas por ali. Eu conhecia tudo como a palma da minha mão. Cada plano, cada ondulação, cada árvore, que eu nunca cansava de admirar ou de notar.

Era um homem da terra, do chão, das coisas simples da vida. Nunca quis muito mais do que eu tive e isso não significava que fosse acomodado, mas sim satisfeito. Para mim sempre era um prazer acordar a cada manhã e me deparar com aquela paisagem que já fazia parte de mim, da minha história, do que eu sentia como felicidade. Ali nasci, cresci, chorei e sorri, me formei como homem, me tornei quem eu era. Ali estava a minha família, que como a fazenda, era o que eu prezava acima de tudo.

Sabia que morreria ali também, minha seiva e minha essência enterradas naquela terra, se misturando a ela, fazendo-me parte de tudo aquilo para sempre. Havia um pequeno cemitério na Falcão Vermelho para os empregados e pessoas da família, onde minha mãe e meus avós estavam enterrados. E para onde um dia eu iria, feliz na morte como fui em vida pelo simples fato de permanecer naquele chão.

Sorri comigo mesmo, sem qualquer medo do futuro ou do destino. Não era homem de me preocupar muito com o que estava reservado para mim, nem perder tempo lamentando o passado. Tive minha cota de alegrias e sofrimentos em meus quase 38 anos de vida, como qualquer um. Lembranças doloridas ou saudosas às vezes voltavam, mas não me prendiam ou desanimavam. Apenas ajudavam a forjar quem eu era e a evitar os mesmos erros na caminhada. E eu sempre seguia em frente, seguro, tranquilo, preparado para tudo que viesse.

Meu sorriso se ampliou ao ouvir o barulho da moto e ver Pedro aparecer na estrada iluminada, deixando um rastro de poeira atrás de si, apressado por estar atrasado. Sabia que eu o esperava e na certa tinha vindo como um louco pelo caminho, sempre agitado, dinâmico, querendo engolir a vida como se essa lhe escapasse por entre os dedos. Não havia pessoa com personalidade mais oposta à minha do que ele e, no entanto, não havia também amigo maior ou alguém com quem eu me desse melhor do que Pedro.

Eu amava todos os meus irmãos, sem distinção. Mas com Pedro era algo além. Era uma amizade e uma comunhão praticamente desde que nascemos, com apenas a diferença de um ano entre nós. Éramos, acima de tudo, companheiros inseparáveis, almas gêmeas, unha e carne.

Tia dizia que não entendia como fogo e água poderiam se dar tão bem, mas era assim. Ele fogo, consumindo tudo, voraz, incendiando e deixando um rastro atrás de si. Eu, água, plácido, como um lago profundo e límpido, correndo lento pelas margens, banhando meu caminho. Nunca um anulava o outro, ao contrário, nos complementávamos, nos equilibrávamos. Quando ele estava fora de controle, eu o continha; quando eu estava parado demais, Pedro me sacudia, me causava ondas. Era amor de irmãos, de amigos, de comunhão para toda a vida.

Rendida (Livro 4 da Série Segredos)Onde histórias criam vida. Descubra agora