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4 de outubro de 1864

Como humano, eu pensava ter sido a morte de minha mãe que dera forma aos homens que Damon e eu nos tornamos. Nos primeiros dias após sua partida, eu chamava a mim mesmo de meio-órfão, tracando-me no quarto, sentindo que minha vida tinha terminado na tenra idade de 10 anos. Papai acreditava que o luto era sinal de fraqueza e falta de verilidade, então foi Damon que me confortou. Ele saía para cavalgar comigo, deixava-me brincar com os meninos mais velhos e batia nos irmãos Giffin quando caçoavam de mim por chorar por minha mãe durante um jogo de beisebol. Damon sempre foi o forte, meu protetor.
Mas eu estava errado. Foi a minha morte que deu forma a quem sou.
Agora a mesa virou. Sou forte e venho tentando ser o protetor de Damon. Embora eu sempre tenha sido grato a Damon, ele despreza e me culpa pelo que se tornou. Eu o obriguei a se alimentar de Alice, uma garçonete da taberna da cidade, que completou a transformação dele. Mas isso faz de mim um vialão? Penso que não, em especial porque o ato salvou sua vida.
Finalmente, vejo Damon como meu pai o via: imperioso demais, voluntarioso demais, chegando a conclusões precipitadas demais, lento demais para mudar.
E como também percebi nesta noite enquanto permanecia à luz fraca do lampião a gás com o corpo da enfermeira a meus pés: estou só. Um órfão completo. Da mesma forma que Katherine havia se apresentado quando chegou em Mystic Falls para ficar em nossa casa de hóspedes.
Então é assim que os vampiros vivem. Eles explodem a vulnerabilidade, fazem com que os humanos confiem neles e depois, quando todas as emoções estão sololidificadas, atacam.
É o que eu farei. Não sei como nem quem será minha próxima vítima, mas sei, mais do que nunca, que a única pessoa de quem posso cuidar e a posso proteger é a mim mesmo. Damon está por contra própria e eu também.
Ouvi Damon zanzar pela cidade, movimentando-se à velocidade de vampiro pelas ruas e vielas. A certa altura ele parou, sussurrando o nome de Katherine repetidas vezes, como um mantra ou uma oração. E em seguida, nada...
Estaria morto? Teria se afogado? Ou simplesmente estava longe demais para que eu o ouvisse?
Qualquer que fosse o caso, o resultado era o mesmo. Eu estava só - tinha perdido minha única ligação com o homem que fui: Stefan Salvatore, o filho obediente, amante de poesia, o homem que lutava pelo que era certo.
Perguntei-me se isso significava que Stefan Salvatore, sem ninguém para lembrar dele, estaria verdadeiramente morto, permitindo que eu fosse...qualquer um.
Eu podia me mudar para uma cidade diferente a cada ano, ver o mundo todo. Podia assumir quantas identidade quisesse. Podia ser um soldado da União. Podia ser um homem de negócios na Itália.
Podia até ser Damon.
O sol imergia rápido no horizonte, como uma bola de canhão caindo na terra, mergulhando a cidade na escuridão. Entrei em várias ruas iluminadas à gás, as solas de minhas botas raspando no paralelepípedos. Um jornal perdido foi soprado em minha direção. Pisei na folha, exaninando a imagem impressa de uma menina de cabelo preto e comprido e olhos claros.
Ela me parecia vagamente familiar. Perguntei-me se era parente de uma das meninas de Mystic Falls. Ou talvez uma prima sem nome que ia aos churrascos em Veritas. Mas então vi a manchete: ASSASSINATO BRUTAL A BORDO DO EXPRESSO ATLÂNTICO.
Lavínia. Claro.
Já me esquecera dela. Estendi a mão e amassei o jornal, atirando-o o maid longe que pude no Mississipi. A superfície da água era lamacenta e revolta, banhada pela luz da lua. Eu não podia ver meu reflexo - não via nada, apenas um abismo de trevas, tão profundo e escuro com meu novo futuro. Poderia eu continuar eternamente me alimentando, matando, esquecendo, depois repetindo todo o ciclo?
Sim. Cada instinto e impulso que eu tinha gritava sim.
O triunfo de me aproximar de minha presa, tocando meus caninos na pele que cobria o pescoço, ouvindo o coração desacelerar a um baque surdo e sentindo o corpo amolecer em meus braços... Caçar e me alimentar me deixavam vivo, completo; davam-me um propósito no mundo.
Era, afinal, a ordem natural das coisas. Os animais matava humanos mais fracos. Humanos matavam animais. Eu matava humanos. Cada espécie tem um inimigo. Estremeci ao pensar que monstro seria poderoso o bastante para me caçar.
A brisa salgada que vinha da água era temperada com o odor de corpos sujos e comida podre - muito diferente do aroma do centro da cidade, onde os cheiros de perfume floral e talco pendiam no ar das amplas ruas. Aqui, as sombras estavam em cada canto, sussuros surgiam e sumiam com o fluxo do rio e soluços de bêbado penetravam o ar. Era um lugar sombrio. Perigoso.
Eu gostava bastante.
Virei a esquina, seguindo meu olfato como um cão de caça no rastro de uma corça. Flexionei os braços, pronto para uma caçada -um bêbado encharcado de gim, um soldado, uma mulher na rua depois de anoitecer. A vítima não importava.
Virei a esquina e o cheiro de ferro do sangue ficou mais próximo. Era doce e defumado. Concentrei-me nele, na expectativa de cravar minhas presas em um pescoço e me perguntando de quem seria o sangue que eu bebia, que vida estava subraindo.
Continuei, acelerando o passo ao localizar a origem do cheiro, uma ruela anônima ladeada por uma botica, um armazém e uma alfaiataria. A via era uma réplica de nossa rua principal em Mystic Falls. Mas enquanto tinhamos apenas uma, Nova Orleans devia ter dezenas, se não centenas, desses corredores comerciais.
Agora o cheiro de ferrugem era mais forte. Virei aqui e ali, minha fome crescendo, ardendo, queimando minha pele ate que finalmente cheguei a uma construção baixa cor de pêssego. Mas quando vi a placa pintada nos altos das portas, parei. Havia embutidos pendurados na janela encardida da casa; peças de carne curadas penduradas no teto como móbile grotesco de uma criança; costelas esculpidas estavam aninhadas em gelo sob o balcão e, no canto mais distante, pediam carcaças inteiras, o sangue escorrendo em grandes tonéis.
Mas isto era...um açougue?
Suspirei de frustração, mas ainda assim minha fome me obrigava a abrir a porta. A corrente de ferro se quebrou facilmente, como se não fosse mais resistente do que um fio de linha. Dentro da loja olhei as carcaças ensanguentadas, hipnotizado por um momento com o sangue que caía nos toneis, gota por gota.
Além do barulho do sangue escorrendo, ouvi um levíssimo ping, não mais alto do que o torcer de um bigode de camundongo. Depois veio o leve arrastar de pés sobre o concreto.
Recuei, os olhos disparados de um canto a outro. Camundongos corriam sob as tábuas do piso, o relógio de alguém batia na casa ao lado. Tudo o mais era silêncio. Mas o ar em volta de mim ficou mais baixo, dando-me a clara compreensão de que não havia saída desta sala da morte.
-Quem está aí? - chamei para o escuro, girando o corpo com as presas à mostra. Depois veio o movimento. Presas, olhos, o bater de passos que se aproximavam de mim por todos os cantos.
Um grunhido baixo e gutural ecoou nas paredes sujas de sangue da loja e percebi, com sobressalto nauseante, que eu estava cercado de vampiros que pareciam, todos, prontos para atacar.

sede de sangue -diarios de Stefan -vol.2Onde histórias criam vida. Descubra agora