Você acredita em Deus?
Estava organizando a palha no celeiro, da mesma forma que fazia a uma semana, estava vivendo com Watts e mantendo uma rotina estável, acordava todas as manhãs com o sol nascendo, cozinhava -buscando variar o máximo cada vez- e em seguida descia o rio caminhando com os pés descalços, muitas vezes, por sua margem, ficava o restante do dia colhendo frutas da natureza, nadava e observava o céu, até o momento em que a tarde chegasse ao fim e eu retornava para dormir.
A rotina que estava desenvolvendo era estável e confortável, todavia mantinha-me inquieto e não gostava de me aproveitar tanto do bom senhor, sentia-me como um encosto, um presente grego que os deuses enviaram ao pobre coitado, por isso estava destemido à encontrar um emprego no vilarejo, nem que fosse por uma moeda de bronze.
Com os dias naquele mundo, ainda que não tivesse tido a oportunidade de estudar o lugar, ou tivesse me movimentado muito, e basicamente não interagi com ninguém, nas conversas com o homem que estava vivendo junto entendi como funciona o sistema monetário, baseado em moedas de bronze, prata e ouro, além de trocas e o reconhecimento de jóias, mas isso se fazia problemático, pois não existia um consenso para seus valores.
Acordei cedo, com o som da água derramada dos céus batendo fortemente contra o telhado que parecia que cederia a qualquer instante. Andei rapidamente até a porta principal utilizando somente as beiradas da casa, onde eu sabia que me molharia menos.
—Licença. —eu disse ao entrar na cozinha, onde, como eu já suspeitava, o dono da residência estava sentado.
Com um aceno de cabeça ele autorizou minha entrada.
—Posso começar a preparar o café da manhã? —esperei a autorização rotineira para poder mexer nas coisas. Ele mais uma vez movimentou somente o crânio, e eu já interpretei como sim. —Desta vez não vai ter como eu pegar ervas lá fora para temperar, vou cozinhar com o que tem.
Da mesma maneira que já vinha ocorrendo há alguns dias, ele não falou nada, e senti que seria incômodo continuar tagarelando sem parar, por isso me contive a preparar uma refeição nutritiva em silêncio.
Servi as porções em dois pratos, e entreguei um deles ao anfitrião.
Enquanto mastigava o pão, o qual eu vinha me acostumando com a textura e com o sabor, que era muito diferente do que tinha no meu antigo mundo, decidi falar mais uma vez, desta vez uma informação que seria de grande ajuda para mim
—Senhor Watts, —chamei, e ele ergueu seu olhar que a pouco se encontrava concentrado na comida. —O senhor acredita que eu consiga encontrar um emprego?
—Você, garoto? —ele respondeu com tom de deboche. —Jamais, todos te odeiam por aqui. —isso é verdade.
—Mas não tem nada que possa fazer? —supliquei por uma resposta, qualquer uma que fosse, pois não era mais aceitável continuar vivendo como os meus dias têm sido. —Uma maneira de me redimir?
—Creio que não. —meu rosto entristeceu-se, e o outro notou, e creio que por isso ele continuou falando. —Precisa de dinheiro para alguma coisa?
—Não, na verdade não.
—Então por que tem interesse em um emprego? —ele falou sem entender o motivo de minha preocupação.
—Não posso viver sem fazer nada como ando fazendo. —suspirei.
—Se quiser, —pausou sua fala, assim como sua ação, por instantes de agonia, —se quiser pode me ajudar com meus afazeres.
Não pude deixar de sorrir com alguém sendo tão gentil comigo.
—Senhor, eu adoraria ajudar, —apesar do que disse, não podia aceitar, procurei por alguns instantes as palavras mais adequadas para negar, —porém, eu acho que não posso fazer isso, só vou te atrapalhar.
—Faça o que você quiser. —ele deu os ombros, e seu rosto parecia ainda mais bravo do que o de costume.
Me senti péssimo por fazer aquilo, um senhor daquela idade, sozinha, cujo filhos e netos eu nem sabia se existiam, parecia necessitar de companhia, mas eu não podia fazer isso por ele, precisava seguir a missão da qual eu fui designado.
—Senhor, —chamei novamente, e desta vez a atenção que eu recebi parecia negativa, —tem alguma igreja ou capela no vilarejo?
—E agora você não sabe? —perguntou retoricamente. —Tu conhecias esta vila como a palma de sua mão, —cocei a cabeça e apresentei meu sorriso amarelo, pois de fato o dono do corpo deveria saber, porém eu não sei, —justamente por isso todos te conhecem e te odeiam.
—Bem...sabe como é? —busquei alguma desculpa válida. —Eu me esqueci. —o senhor suspirou pesadamente.
—Próximo a entrada do vilarejo tem uma capela. —ele me encarou e hesitou em continuar falando. —No centro... No centro já está tendo uma grande comoção, pois dentro de alguns dias um padre deve chegar para celebrar a missa.
—Entendi, —sorri.
Não sabia se devia continuar tentando manter uma conversa, entretanto, apesar de não querer ser um incômodo precisava saber mais sobre o este mundo que tinha vindo.
—O padre vem para algum evento específico?
—Sim, para celebrar o dia dos cem Deuses. —creio que pela primeira vez observei Watts tão animado, ou melhor dizendo -com um pouco de vitalidade- respondendo algo que eu perguntei.
—Nossa, —exclamei, —cem Deuses?
—Você realmente não sabe de nada, garoto? — franziu as sobrancelhas grossas e grisalhas.
—Não. —sorri um pouco sem graça e passei a mão na nuca.
—Bem, acreditamos que existe vários deuses que exercem diversas funções, e passamos o período de colheita inteiro celebrando a eles, porém no último dia comemoramos a todos.
—Você sabe se existe algum deus com corpo feminino, cabelos escuros e compridos.
—Ah, não tem como ter precisão de suas imagens.
—Existe algum deus da reencarnação então.
—Nem mesmo eu conheço todos, —ele passou a mão pelos finos e escassos fios de cabelo, —na verdade eu nunca fui muito ligado à religião, —balancei a cabeça prestando atenção, —nem sei se acredito nisso, —também não acho que acreditaria se não tivesse passado por tudo que passei até chegar aqui, —mas não comente com ninguém, ninguém gosta de ouvir isso por aqui.
—Então a religião é muito importante por aqui?
—De certa maneira, ela tem uma função bastante pragmática, ainda que dizem que é mais forte na capital. Um vilarejo pequeno como esse é esquecido por clérigos e papas, parece ser esquecido até por Deus às vezes. —diminui gradativamente o tom de sua voz.
Esse assunto parece ser um tanto inconveniente para Watts.
—Eu não conheço muito da religião daqui, —eu disse propondo um fim ao assunto, uma vez que nós dois já tínhamos finalizado a refeição, —mas acredito em deus, por isso irei visitar a capela hoje. —ele deu de ombros. —Obrigado pela comida, —levantei-me da cadeira, —obrigado pelas informações também. —curvei-me, com o intuito de pedir para me retirar, e ele acenou com a cabeça -como vinha fazendo- e eu saí em disparada ao centro, mesmo debaixo de chuva, se deus quiser não pegarei um resfriado.
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Eu Vou te Trair
FanfictionSenti todo meu corpo desligar após um forte impacto, naquele momento doeu muito, muito mesmo, toda parte de mim parecia estar sendo alfinetada por grossas agulhas, entretanto em menos de dois minutos tudo passou, minha visão nublada escureceu por co...