Me akoús apó edó?

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Daqui você pode me escutar?

Passei a me esgueirar pelas ruas mais calmas do vilarejo na intenção de encontrar a capela, Watts disse-me que ficava próximo a entrada, porém ser ter noção de onde era acabei por perguntar a alguns cidadãos, escolhi a dedo aqueles que pareciam ter minha idade, que passassem pela adolescência, pois em qualquer época, essa fase da vida é sempre o mesmo, ao passo que tudo é um grande drama para eles, creio que se importem pouco com outras coisas. Questionar os idosos era perda de tempo, todos apenas me encaravam com asco ou me xingavam, enquanto os adultos revoltados gritavam e eram violentos, e as crianças falavam alto para seus pais e repetiam, como se fosse mantras, as ofensas que os seus cuidadores proferiam contra mim.

Cheguei, obviamente encharcado, pois os céus não davam trégua alguma, a porta da capela, que não era tão pequena quanto pensava, na verdade poderia ser chamada de igrejinha sem nenhum problema, ao invés do título que carregava.

Entrei eu seu território, e proferi palavras de perdão por molhar tanto um lugar sagrado. Acabei por fazer um rastro até o altar, onde me ajoelhei, eu juntei minhas mãos e falei, não somente na mente como fazia na maior parte das vezes, desta vez usando toda a potência de meu diafragma.

—Deusa, daqui você pode me escutar? —perguntei, mas não esperava receber uma resposta convencional. —Venho orando todas as noites a procura de respostas, será que daqui consegue me ouvir melhor? —Olhei à minha frente, onde existia uma imagem com aparência feminina, cabelos longos e tules que cobriam todo o corpo, onde a saia volumosa parecia ondular assemelhando-se ao fluxo de um rio.

Mais uma vez voltei a me concentrar nas orações.

—Deusa, se Watts foi colocado em meu caminho por obra sua, fico extremamente grato, mas me deixe dar ao luxo de pedir outra coisa; me dê um sinal que seja, para onde devo seguir, quem devo encontrar, o que posso fazer para encontrar meu objetivo. Deusa estou tão perdido e assustado, por favor, fale comigo mais uma vez e me instrua.

Levantei-me e me curvei em sinal de respeito a entidade dona do local, sai pela única portinha que tinha e minha presença foi reconhecida por dois homens altos, com roupas de couro e um deles até mesmo uma cicatriz grande no rosto, mais precisamente na bochecha direita.

—Ah, —aquele de cabelos amarrados em um rabo curto falou de maneira arrastada, —então agora o batedor de moedas frequenta lugares sagrados. —sua voz grave rangeu sarcástico e intimidadora, senti um frio medonho percorrer a espinha. —Mas não adianta vir chorar por seus pecados agora. —ele me ergueu sem dificuldade utilizando as duas mãos agarradas à gola de minha camisa. —Se quiser perdão de verdade deveria devolver as moedas de prata que me roubou. —o tecido esfarrapado e velho não demorou muito a ceder, eu cai sentado e logo me encolhi, não tinha como escapar daqueles dois caras.

Estava paralisado de medo, pois sabia que apanhar dele não me dariam apenas hematomas e escoriações leves, apenas ossos quebrados seria pouco comparado ao potencial destrutivo que eles emanavam.

—Pegue a faca. —o que falava a pouco ordenou ao seu parceiro. —Vamos fazer com que ele nunca mais consiga agarrar um punhado de moedas.

—Cortar só os dedos? —o parceiro respondeu. —Um malandro como esse só toma jeito se tirar as pernas. —retirou de dentro de um dos bolsos pretos de material resistente uma faca grande de lâmina suja, que se não me matasse pelo seu fio, me mataria pela infecção que seria transmitida.

—Eu não roubo mais, nunca mais faria isso de novo. —eu falei sem firmeza e com os olhos marejados.

Ambos riram em escárnio.

—Olha só, ele está com medinho agora e quer se redimir. —o da cicatriz falou irônico. —Isso não é desculpa, quero meu dinheiro de volta.

—Eu pago! —falei em desespero, mesmo sabendo que não tenho como pagar.

—Que bonitinho, —falou o da faca, —ele disse que paga, mas sabe... Não quero mais, agora não ficarei satisfeito até ter seus dez dedos. —sem hesitar avançou com a lâmina apontada para meu rosto, e eu consegui desviar por pouco.

Finalmente notei, na minha outra vida nunca teria tido reflexos e um corpo tão bom para desviar de um ataque tão repentino e tão de perto, mas agora, talvez conseguisse correr.

Aguardei com a guarda alta o próximo ataque, e ao conseguir desviar ganhei tempo, alguns segundo, para correr por dentro do vilarejo, onde existia a possibilidade de receber ajuda.

A água torrencialmente fria caía em minha pele e lavava meu suor, embaçava a visão e deixava o chão escorregadio, no fundo, apesar da adrenalina, sentia-me livre, esse foi o banho de chuva mais insano que poderia ter imaginado.

Olhei para trás e percebi que tinha ganhado distância dos senhores, meu corpo estava leve, e pouco ofegante, senti um alívio em poder sobreviver. Até que o chão lamacento me golpeou, a mãe natureza não estava tão ao meu favor, escorreguei, ralando mãos e joelhos, e esses poucos instantes, onde tentava me recompor foram o bastante para eles tocarem minha pele e me prensar contra o chão, puxando meus cabelos violentamente. Me encontrava completamente imobilizado, não tinha para onde correr, droga, agora acabou para mim, de verdade!

Fechei os olhos, me preparando para a dor imensurável, que poderia ser pior do que a morte que já enfrentei.

Escutei barulho de rodas, cascos velozes e em seguida um relinchar. Olhei com as pálpebras semi abertas.

—Pare! —disse um senhor de idade avançada, com pele enrugada, roupas majoritariamente brancas e somente alguns detalhes dourados, coberto por um manto grande de tom escuro que o protegia da chuva. —Soltem esse menino. —os homens deram atenção ao velho.

—Por que a gente deveria? —um deles falou.

—Eu sou o padre que veio realizar a cerimônia. —explicou. —E eu, um servo de Deus, estou ordenando deixar esse menino em paz.

—Sabe, padre, —um deles se levantou, mas o outro manteve-se me segurando para não deixar-me escapar, —esse menino que defende é um ladrão.

—E isso não justifica dois homens adultos intimidando uma criança. Sendo assim, afastem-se, que eu irei lidar com ele.

—Sendo assim, deixamos em sua mão, senhor. —o homem que me prendia cochichou em meu ouvido. —Se nos trombarmos de novo: corra; da próxima vez você não vai sair inteiro. —os dois seguiram para a área do matagal.

Encarei o padre, que veio estender sua mão, graças a Deus estou a salvo pelo menos por enquanto.

Eu Vou te TrairOnde histórias criam vida. Descubra agora