Foi uma semana depois do meu aniversário de dezoito anos. Meu pai tinha deixado claro que "ajudar em casa" não era mais uma opção, mas uma obrigação de que eu não podia mais escapar. Não que eu gostasse de ficar em casa, pelas minhas razões e contrarrazões próprias, sempre preferi estar bem longe de lá. Mesmo assim, acatar aquela ordem maquiada de sugestão, num tom excessivamente passivo-agressivo, foi chateador. Por sorte, minha tia tinha ouvido de uma amiga na missa de domingo que uma prima distante e reclusa estava precisando de um assistente e eu tinha a idade e a "postura" necessária.
"Postura necessária", minha irmã debochou quando comentei "não conhecem ele o suficiente". Minha tia deu-lhe logo uma cotovelada e garantiu que o emprego era do meu mais completo interesse. Eu, pelo contrário, me limitei a erguer os olhos do que quer que eu estivesse lendo no momento e questionasse:
— Assistente de que?
Minha tia, por sua vez, deu uma risadinha e respondeu:
— Gente velha precisa de assistente pra tudo, Gustavo.
Suspirei, mas acatei. Não que eu tivesse algo melhor pra fazer — e desde que meus amigos foram pegos pela polícia e acabaram indo parar pelos lados da FEBEM, eu realmente não tinha —, mas ocupar minha mente com algo produtivo parecia interessante. E toda insistência da minha mãe e ingerência do meu pai foram suficientes para me convencer. Pedi à Tia Monalisa que avisasse a senhora que tinha interesse na vaga. Tamanha minha surpresa quando no dia seguinte à minha aceitação, chegou em casa uma cartinha envolta num envelope branco, selada com um adesivo católico e cheirando à arruda.
Na carta, extremamente formal, havia uma pequena introdução cheia de delongas e pormenores, numa letra muito formosa e agradável, em que a Senhora Ana Padilha se apresentava e me convidava a conhecer o lugar onde poderia vir a trabalhar, caso fosse do meu interesse. Foi uma situação engraçada, afinal, quem mandava carta em pleno século vinte e um? Ou melhor, numa situação dessas? Ou, ainda, tão rapidamente? Mas tia Monalisa garantiu que estava tudo na normalidade e incitou minha visita à casa da sra. Ana. Então aceitei.
A casa ficava na Rua Cornélia e para chegar até lá precisava pegar um ônibus. Era, definitivamente, o último ponto em que o ônibus parava, quando não havia ninguém lá dentro além de mim e do motorista. A casa de isolava num vasto campo de pastos e loteamentos, rodeada por floreios rurais e plantações de milho, além de uma charmosa e convidativa mata virgem, onde cresciam as mais belas e verdejantes árvores da flora tropical, corriam os animais mais misteriosos da mata selvagem e onde passeavam os espíritos mais esquecidos do mundo dos vivos. A viagem para a Rua Cornélia era quase uma viagem no tempo: atravessando da cidade grande, onde erguiam-se prédios e construções modernas, e adentrando no passado vivo e presente, onde casas de arquitetura senhoriais resistiram às intempéries do tempo e continuavam vivas e eternas nas zonais rurais do município.
Costumava viajar ouvindo música nos fones de ouvido, com o rosto colado ao vidro do ônibus, observando cada traço de cidade se esvair e dar lugar aos campos e pastos, onde corriam gado, e aos céus azuis safira, onde pássaros gigantes cruzavam em bando e dançavam sob a luz do sol escaldante.
Foi ali, então, que eu vi pela primeira vez na vida, meio a luz cínica de verão, naquele clima intempestivo, em que o sol significava chuva e a chuva significava sol, a luz que corria entre os vivos como se gente fosse, dançando amigavelmente no meio das árvores na mata que contornava a estrada. Ela, tão ágil e tão magnífica, numa amabilidade palpável e surpreendente, parecendo que acompanhava o ônibus e lutava para ser percebida em meio a vastidão verde que lhe rondava. Eu a percebi. E ela me percebeu. Eu sorri, inesperadamente tocado, mas um pouco assustado. Então ela desapareceu e eu pude voltar para meus pensamentos, acreditando não se tratar de nada além de uma visão provocada pelo calor.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Todos os Segredos da Rua Cornélia
FantasyNum canto qualquer de Minas Gerais, entre morros verdejantes cobertos de mata atlântica, corredores cheios de jacarandás em flor e toda mágica que só poderia ter saído de um sonho, ergue-se a Rua Cornélia, onde senhoras conversam com passarinhos, fe...