Capítulo 03 - os fantasmas de Geni e Lady Sienna

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Eu nunca tive medo de fantasmas. Enquanto a maioria das crianças crescia atormentada com histórias assustadoras de seres translúcidos que aparecem na madrugada e puxavam nossos pés, tudo que sempre senti por eles foi uma grande empatia e reconhecimento pelos tormentos eternos que passavam. Fantasmas são restos da alma que gritam para serem vistos e ouvidos, mas são sempre silenciados, invisíveis — e eu me sentia assim grande parte do tempo. O silêncio, sim, isso sempre foi algo que me atormentou. Na imensidão do desconhecido, no escuro, na noite vaga e no interno de nós mesmos, reinava o silêncio e, com ele, a solidão depravada e constante. O som do nada me dava aflição e me fazia querer gritar, até que houvesse algo para se ouvir, algo que não fosse o barulho da minha própria voz dentro dos meus pensamentos. A música sempre me salvava nesses momentos. As noites do meu quarto nunca eram caladas: se não era a televisão ligada, até o momento que o canal ficasse fora de ar e começasse o chiado da ausência de sinal, era o barulho baixinho da música nos meus fones, sempre me acalentando e me livrando da prisão de não ouvir nada.

O silêncio absoluto gelava minha alma e me deixava agoniado, como se algo ruim estivesse prestes a acontecer. Foi assim que aconteceu uma vez, aliás. Estava tudo muito silencioso e, do nada, o som mais alto que eu já ouvi na vida invadiu meus ouvidos: um grito que retumbou como uma corneta apocalíptica, tão alto e tão profundo que meus tímpanos arderam e minha alma saiu do corpo por um instante. Quando abri os olhos, encontrei o corpo estirado no chão da sala.

Era meu pai, que morreu com um grito e se tornou o silêncio de um corpo morto num assoalho velho.

E o que veio depois disso mudou por completo minha existência. Talvez seja o trauma, talvez seja algo além da compreensão, seres divinos ou realismo fantástico: assistir a morte do meu pai mudou tudo em mim, de uma maneira estranhamente bizarra e excêntrica. Pois, ainda que ele tivesse partido materialmente desse mundo, por alguma razão desconhecida às vezes eu ainda conseguia vê-lo e conversar com ele, como foi no passado, quando ele olhou nos meus olhos e disse que era o momento de crescer e ajudar em casa, pois agora eu era o único homem lá dentro.

O silêncio foi minha tormenta até então e, porventura do desenrolar incomum da história, todos os dias e em todos os momentos havia algo para se ouvir. Nem sempre o dele, as vezes o de outras pessoas. Vozes fantasmagóricas que sussurravam segredos e virtudes no meu ouvido, suplicando para serem ouvidas e atendidas. Não sei se foi um milagre ou uma maldição, tão pesada quanto uma cruz para encarar.

Percebi que eu nunca mais estaria sozinho, no silêncio, e isso era bom na mesma medida que era perturbador. Com o tempo aprendi a controlar essa peculiar característica adquirida e, ainda que houvesse fantasmas que conseguiam sobrepujar o controle fático da minha tendência à mediunidade, se colocando à minha presença quando queriam, podia ter contato com os espíritos na medida da minha própria vontade. Então, sempre que eu estava sozinho e solitário, navegando num silêncio que arrepiava meus pelos e atormentava meu coração, os invocava para que me fizessem companhia. Era divertido. Pelo menos, não era tão solitário.

O ônibus de volta para casa ia sempre vazio. A tripulação era composta por mim, pelo motorista e pelo cobrador, além de duas dúzias de bancos sem ninguém. Costumava ficar calado, me mantendo fechado no meu próprio mundinho, sentado nos fundos do ônibus enquanto aguardava ansiosamente o momento que as luzes eram apagadas para que eu emergisse em pensamentos, enquanto observava a Rua Cornélia se tornando um ponto distante atrás de mim, indo além de onde o ônibus percorria. As florestas à noitinha adquiriam traços românticos e góticos, como se houvessem saído de um conto de Edgar Allan Poe, onde se escondiam misteriosos monstros e criaturas da noite vagante. Como só um ônibus passava naquela rua, naquela hora, se tornou meio que automático o momento que eu entrava, sem querer olhar no rosto daqueles que me faziam companhia ou mesmo ler a placa na lataria do veículo.

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