Capítulo 09 - a órbita fantasma

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Não foi fácil encontrar um instante de paz desde que Michelina Padilha foi atraída para minha órbita espectral, por razão dos meus pensamentos fortuitos e da surpresa do momento que descobri sua existência. Com Lady Sienna e Geni a situação foi diferente: uma noite, em um sonho prófugo e sem sentido, me vi como o expectador da história, atravessando, curiosamente, capítulos do mundo antigo até o meu nascimento, conhecendo pessoas e vivendo vidas distintas, que sempre terminaram com a minha morte, para renascer, em outra existência. Demorou muito para perceber que as memórias que me surgiram, as visões insólitas de vidas estranhas, eram daqueles que eventualmente eram atraídos para minha "órbita fantasmagórica". Os que eu achava de amigos, como Lady Sienna e Geni, os que me assustavam, como Michelina, e os que eu não entendia, como os da rua Cornélia.

Graças ao meu traço de estranheza, vivi a vida de uma cantora de ópera, jovem e imprudente, que fugiu de uma França revolucionária e se escondeu num país tropical, conquistando multidões de fãs e apaixonando todos os homens com quem cruzava, até que uma obsessão profunda e doentia de um deles, que não aceitava a ideia de que outros a vissem e a desejassem, a tirou do mundo dos vivos e enclausurou entre os mortos.

— Com um tiro no coração, foi a queima roupa — ela costumava contar e assim foi. A dor do aço ardente queimando cada centímetro do coração e da carne, atravessando tão rápido quanto o grito que ela soltou me causava arrepios. — Lady Sienna Bombadur, cantora, atriz, uma estrela. — era como ela costumava se apresentar, com sorrisos perolados e olhares circunstanciais.

De volta ao Brasil, renasci numa terra estranha, que havia acolhido minha família com muito trabalho e poucas condições de vida. Éramos imigrantes, gente cansada, pobre, mas forte, que abandonou a pátria mãe napolitana com não mais que as roupas do corpo e a força de vontade. Da Itália fascista a um país instável politicamente, comandado por ricos e silenciador dos pobres, me encontrei numa comunidade esquecida por deus. E precisei fazer minha voz ser ouvida. Vivíamos num vale entre morros, numa cidade próxima a uma represa e a uma mata intocada e mágica. Num país que o dinheiro falava mais alto que qualquer sílaba, principalmente se ela tinha sotaque de outro país, a nossa tenra comunidade ítalo-brasileira encontrou uma sociedade fechada, rural, mas, atraído pela perspectiva de dinheiro fácil, podendo até mesmo ser maior que meus inimigos, me envolvi com o braço da máfia italiana que comandava aquela região brasilense. Dom Pátrio, um sujeito gordo e assustador, que conseguia mover pessoas só com o tom grave de sua voz, era o chefão da máfia daquela época e marido da gloriosa e infeliz Marietta, por quem fui incubido de proteger como um guarda-costas pessoal. Foi então que nós apaixonamos e nos entregamos a todo esse amor. Quando tudo foi descoberto, fui afogado num barril de vinho e escondido no porão de uma igreja, que mais tarde foi queimada e sobre as cinzas ergueu-se uma cafeteria, fazendo com que o meu corpo nunca fosse encontrado e que uma renca de italianinhos nunca conhecessem o tal "primo Geni que se perdeu no mundo".

— Geni Vivaldi, afogado no meu próprio amor — ele costumava dizer, em um tom de embriaguez que era próprio seu, tanto quanto sua voz ou sua face.

Além dos dois fantasmas queridos e frequentes, era comum a visita de desconhecidos, que atravessaram meu caminho como se vivos fossem, e sempre se surpreendiam com minha capacidade de enxergá-los, ouvi-los e, ainda, de conseguir absorver sua energia fantasmagórica e enclausurá-los na minha órbita, criando um elo de cumplicidade com os espíritos que via em vida. Muitas vezes, absorvia suas memórias como se minhas fossem e tudo que viveram em vida parecida ter sido vivido por mim.

A pedido de Sienna e Geni, porém, evitava usar minha peculiaridade com os fantasmas, para que, assim, não atraísse criaturas mal intencionadas e mal encarnadas, que viviam para assombrar e aterrorizar de maneira inescrupulosa. Mesmo assim, havia momentos em que minha maldição saía do controle e qualquer fantasma conseguia se aproximar de mim sem ser devidamente chamado, como foi o caso de Michelina... e do meu pai, naquele dia, algum tempo atrás.

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