Cornélia foi uma retirante para a rua que hoje em dia leva seu nome. Vinda de uma terra seca e quente em um Brasil colonial, era uma mulher magnânima, com a pele parda como a terra e cabelos escuros como a noite, com olhos soturnos, profundos, com um olhar de mata próprio seu, distinto, que nem todos conseguiam sustentar. A primeira Cornélia surgiu da união entre uma indígena corajosa, que se casou com europeu esguio e meticuloso, um nobre vindo de um país europeu com nome esquisito e pessoas frias como estátuas, séculos e séculos atrás. Só que a história da família, de fato, começou quando a primeira Cornélia se casou com o único Estevão, homem gentil e bondoso, que viveu no corpo a dor da escravidão.
Cornélia era a filha mais legítima que o Brasil poderia ter e, seus filhos, herdariam ainda mais desse traço. Era fruto do encontro entre as quatro maiores etnias que andavam pelo país naquela época, e suas descendentes mulheres, que nunca eram parecidas, comumente resguardavam algum traço característico de alguma parte do seu sangue pluriracial. Por muitas vezes nasciam, na mesma linhagem, irmãs negras, irmãs brancas e irmãs pardas, cada uma com sua parte do sangue miscigenado da primeira mulher a carregar o anátema da família. A sina das mulheres que nunca eram parecidas, mas que sempre vinham ao mundo destinadas à revolucioná-los.
Já os homens sempre foram criaturas estranhamente parecidas, que se conectam nas mesmas sinas e mantém a mesma roda de destinos amaldiçoados. Cornélia viveu tempo o suficiente para testemunhar que mesmo o mais distinto dos homens de sua família caía na maldição da mesmice e se propunha a manter um ciclo, como o de megalomania e narcisismo, ou aqueles que não podiam resistir à atração que o mundo inteiro a se desbravar significava e partiam em viagens sem sentido e sem data de regresso, ou, ainda, aqueles que vinham ao mundo com a promessa de serem excessivamente gentis ou caoticamente maus.
A vida da primeira Cornélia foi longa o bastante para que ela pudesse testemunhar o nascer e a decadência de pelo menos cinco gerações da família Padilha, e ela havia percebido, mesmo antes de chegar a rua que em outros tempos levaria seu nome e que até então era só um pedaço de mata intocada, como cada geração era sempre composta por um trio de rapazes com personalidades únicas e dilemas parecidos, cada qual com seu primeiro nome, mas todos eles com o mesmo e indistinto Élio, traço nominal que simbolizava sua família, além das peculiaridades que os seguiam onde quer que fossem.
Seu primeiro filho, o devido primeiro "Élio", nasceu quando ela e o marido, Estevão, estavam na luta para conseguir terra própria para se viver, num Brasil escravagista, que ainda era nocivo para pessoas como eles... e a união de pessoas como eles. Eles moravam numa cidadezinha beira-lago em Minas Gerais, na rota do ouro das minerações. Era uma casinha de dar dó: de pau a pique, com um único cômodo para toda a família. Mas Cornélia era feliz, muito feliz, pois ter uma casa para chamar de sua era tudo que ela sempre quis em vida. O segundo Élio veio quando eles foram depostos da casinha miserável que viviam. Estevão sempre foi o homem mais otimista que esse mundo já viu e não importava a situação estava sempre com um sorriso no rosto e uma palavra para encorajar a amada.
— Não existe dor ou perda que eu não possa suportar enquanto tiver vocês. Mas se perder vocês, ai vou precisar me preocupar — ele costumava dizer e Cornélia costumava sorrir. Ela o amava. Eles se amavam. Mais do que qualquer um poderia dizer.
Em algum momento da infância o primeiro Élio começou a observar com uma atenção mágica e estranhamente centrada os bandeirantes, tropeiros e jesuítas que atravessavam o seu caminho, além de se interessar desde sempre por objetos como mapas, bússolas e relógios. Estevão costumava brincar, dizendo que o filho seria um explorador nato e Cornélia sempre o repreendeu, pois temia só de pensar em ficar longe de um filho. Só que Estevão, para sua melancolia, estava certo, e graças a habilidade peculiar do primeiro filho a família encontrou um pedaço de terra, meio todas as matas do mundo, longe da miséria e da dor, onde árvores de jacarandá floresciam no verão, bambuzais chacoalhavam com o vento e um adorável lago adornava a mata virgem. Um lugar com uma aura mágica, com uma brisa fresca, quase oceânica, que deixava o ar salgado, entre um mar de morros verdejantes e uma terra fértil e viva.
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Todos os Segredos da Rua Cornélia
FantasyNum canto qualquer de Minas Gerais, entre morros verdejantes cobertos de mata atlântica, corredores cheios de jacarandás em flor e toda mágica que só poderia ter saído de um sonho, ergue-se a Rua Cornélia, onde senhoras conversam com passarinhos, fe...