Capítulo 10 - os sonhos amaldiçoados

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A mureta branca, sob a luz da lua nova, com o inconfundível aroma açucarado do refrigerante de abacaxi e os cabelos vermelhos esvoaçando na brisa noturna haviam se tornado a marca registrada dos meus encontros com Leila, que sempre esperava e espreitava tarde da noite, quando eu regressava para casa, passando pela rua Cornélia e indo até o ponto de ônibus. A moça sardenta e destrambelhada estava sempre disposta a estender uma conversa por quanto tempo fosse necessário. Costumava acreditar que a solidão provocada pela sua condição especial, que a tornava aversa a luz do sol, a tornava também uma loba solitária, que só podia admirar e contemplar a rua nas noites vazias. Sempre que me via ela sorria, e sempre tinha um assunto para tratar.

Um dia desses ela fez questão que eu provasse uma sodinha enquanto me contava um causo.

— Apesar da vidente ter dito que essa rua teria o nome dela, a Cornélia que nomeou a rua não é ela, mas uma descendente — ela afirmou, convicta. Me recostei na mureta, curioso. Michelina Padilha surgiu num espasmo às costas de Leila e ficou ouvindo tudo atentamente — Só que como nessa família — e ela apontou para o casarão dos Padilha — eles tendem a repetir nomes, acaba que tem essa ideia de que foi a primeira Cornélia que deu nome à rua. Só que a outra Cornélia, ah, essa teve uma história... — afirmou, divagando em pensamentos — Imagina você ser considerada a mulher mais bonita do mundo? Era o fardo que ela carregava, por isso evitava sempre sair da rua Cornélia. A beleza dela era tão avassaladora que todos paravam para olhar e poderiam ficar por horas e mais horas só admirando. Essa tal saiu das imediações da ria uma única vez, até aquele dia claro, para tratar um panarício que surgiu no dedo do pé dela. Diziam que nasceu por despeito das vizinhas.. E quando ela saiu, aconteceu até acidente de carro, por conta de dois motoristas que não conseguiram tirar os olhos dela. No dia seguinte a sua rápida visita ao médico, como uma notícia que se espalha instantaneamente por todos os lados, todos os homens mais poderosos do mundo tomaram ciência da sua existência e da sua beleza e foram magicamente atraídos para a rua Cornélia, a fim de propor casamento aquela bela moradora — Leila deu um sorrisinho carismático — E vieram reis da europa, usando capas de linho e coroas cheias de jóias, que lhe ofereceram títulos, terras e diademas; vieram sheiques e sultões das arábias, usando tecidos brancos como leite, oferecendo camêlos cheios de ouro e tecidos dos mais finos; príncipes japoneses, senhores da dinastia meiji, com sedas, especiarias e porcelanas; chefes de tribos indígenas, reis africanos, faraós egípcios, homens de negócio, em ternos e com maletas, malandros de chapéu panamá, cientistas, bicheiros, jogadores de futebol, pintores, cantores, soldados... Todos os homens do mundo vieram em marcha para a Rua, fizeram uma fila indiana que chegava até quase na cidade e, um a um, realizaram suas ofertas de casamento à Cornélia.

Bebi um gole do refrigerante e observei, curioso.

— Acho que já ouvi falar disso, mas muito por cima. Apesar dela se chamar Cornélia não era assim que ela era conhecida, não é? Ela tinha um apelido — questionei. Leila assentiu, pensativa.

— Ela só foi chamada de Cornélia até o dia que conheceu um jovem engraxate, que viu naquela multidão que rumou em procissão até a rua a chance de fazer fortuna — ela deu uma risadinha — e eu tenho certeza que fez. Você já reparou no chão daqui? É terra e poeira pura. Os sapatos de todos ficaram imundos e eles precisavam estar perfeitamente apresentáveis diante da mulher mais bonita do mundo. Ah! Eles se digladiaram pelos serviços do engraxate e lhe fizeram ofertas milionárias. Ah, posso dizer que ele fez uma pequena fortuna limpando sapatos, só que, no fim, a maior de todas as riquezas foi ter cruzado os olhos com a moça mais bonita do mundo e ter tido ali, a certeza de que eles foram feitos um para o outro. E a Cornélia, ah! Sabe, dizem que almas gêmeas, quando se veem pela primeira vez, têm a certeza absoluta do que significam um pro outro. E eu posso dizer isso porque já cruzei os olhares com a minha alma gêmea e tive certeza disso, apesar do tabelião Rodolfo ainda não ter percebido, então eu sei exatamente o que ela sentiu quando viu os olhos do engraxate pela primeira vez. Foi então que ela abandonou as coroas, os tecidos de linho, as maletas de dinheiro e as promessas milionárias de contos de fadas e decidiu que seria a esposa do único homem que não havia lhe feito uma proposta.

Todos os Segredos da Rua CornéliaOnde histórias criam vida. Descubra agora