Apsu Abissal

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Assim que os dois atravessaram a entrada, foram recebidos por um aroma impactante de peixe podre, lixo, fumaça, urina e sal. Cercada por um muro alto, mas antigo e desgastado de pedra, a cidade demonstrava já ter tido seus tempos de glória. Com ruas estreitas e sinuosas, que serpenteavam entre as casas de madeira envelhecida e depredada. O tempo deixou suas marcas nas obras, com telhados caídos e tortos, paredes de pedra desgastadas e remendadas com madeira e janelas quebradas isoladas com tecidos.

Ao longo das ruas, comerciantes vendiam suas mercadorias em barracas improvisadas sobre a calçada. O caminho todo da entrada até o cais, que era possível de se ver timidamente perdida entre as estruturas desgastadas da cidade, era repleto de tendas, comerciantes e vendedores de tudo quanto é tipo de coisa, enquanto bêbados faziam suas necessidades em muros nos becos e desmaiavam pelas ruas.

Além de parecer uma cidade medieval temática, abandonada e fedorenta, Navi destacou atenção às criaturas que peregrinavam pela rua. Entre seres humanoides extremamente magrelos e escamosos, com cara de peixe e membranas entre os dedos das mãos, que possuíam garras pontudas, Navi conseguia definir outras formas de vida. Um deles, um comerciante, era extremamente barrigudo, rosado e peludo. Sua cabeça era de javali, e suas unhas eram grossas e negras. Preparava um ensopado nojento em um tacho de ferro, enquanto tossia sem cobrir a boca e esfregava o nariz com seu avental embolorado.

Mais abaixo, descendo a via, uma mulher com a pele verde e escamosa, usava um vestido de alça longo, rodado e vermelho, com uma túnica em sua cabeça. Parecia vender perfumes, essências e ervas. Seus olhos eram amarelos como os de uma serpente, e a boca sem lábios era rasgada até próximo aos furos de seu crânio, onde deveriam haver orelhas. Descendo mais um pouco, um ser de sobretudo oferecia colares e pulseiras que provavelmente eram roubadas. Navi não soube descrever de uma forma diferente, além de um imenso babuíno amarelo, mas um terço maior do que um humano comum. Fora isso, criaturas que já fizeram parte da cultura adolescente do garoto, caminhavam imponentes. Sátiros, centauros e harpias faziam compras e conversavam pelas vielas e entradas das casas. Conforme desciam mais em direção ao cais, um outro comerciante que o garoto viu, lembrava muito o Amze. Um velho que vendia poções, pedras e elixires. Diferente do que Navi já conhecia, este outro tinha o corpo composto por pedras, e a ausência total de cabelo em seu couro cabeludo.

Algumas quadras abaixo, Navi e Mizane chegaram até a borda do mar. Os barcos pesqueiros e navios ancorados balançavam suavemente com as ondas suaves que batiam no cais, estralando cordames, madeiras e tilintando sinos. Trapiches de madeira bem reforçado serviam de passagem para os pescadores e trabalhadores daquela cidade. Os dois caminhavam lado a lado pela calçada na beira do porto, e Navi aproveitou para admirar as águas.

Naquele momento, tudo parecia igual ao seu mundo, exceto pelas transições de cor do céu, e uma imensa lua que se arrastava pelo horizonte, quase apagada pelas luzes do dia. Navi parou por um momento, encostando-se nas correntes que separavam a queda até o oceano e a calçada. Mizane parou ao seu lado.
- Tem uma história que os mais antigos contam, que fala que nossa lua já foi uma criatura. - Começou a contar Mizane, olhando para o horizonte junto do garoto - Outros dizem que lá existe um templo, que seria o lar dos quatro deuses criadores. Muitos povos usam o movimento do nosso mundo em torno dela, para definir o tempo.
- O monstro que me achou na floresta disse que fiquei 15 luas em hibernação, por conta do veneno dos Lacquinns. Aparentemente, isso significa um ano.
- Vocês contam horas, minutos e segundos no seu mundo? - Perguntou Mizane.
- Se você quer dizer que cada hora equivale a 60 minutos neste mundo, então temos algo em comum.
- Que bom. Como vocês fazem a contagem de luas? Como se passam as datas no mundo de vocês?
- No decorrer do dia, somamos 12 horas, e o passar da noite, mais 12 horas. Cada novo dia se encerra um ciclo de 24 horas. 365 dias percorrem um ano. - disse Navi, se virando para Mizane, para prestar atenção na explicação.
- Perfeito. Seu mundo possui contagem fixa. Isso facilita pra vocês. Presta atenção nos nossos sóis. - disse Mizane apontando para cima. Navi seguiu seu dedo - Possuímos três esferas de calor que circulam através do nosso mundo. Iluminam desde a Floresta das Almas até as terras inexploradas no outro extremo do mar. Fazem com que nossa agricultura cresça, e nossas roupas sequem. Eles não possuem um ciclo fixo de movimento, então você pode ver variações significativas em suas posições. Ao mesmo tempo em que hoje eles estão andando um atrás do outro, amanhã eles podem estar enfileirados lado a lado. Além disso, os sóis podem demorar as tradicionais 12 horas de seu mundo, ou até demorar uma ou duas horas a mais, para que os três sumam por completo. Até contamos os dias, quando falamos que passamos o período de sóis realizando certas ações, porém, contar as luas para definir grandes prazos é algo mais fácil. Nossa lua sempre está visível no horizonte. Às vezes um pouco mais oculta pelos raios de luz, outras vezes é possível até mesmo ver suas crateras e a cor pálida de seu solo. Ela sempre está por ali, transitando no horizonte. Nossa lua se esconde totalmente no horizonte algumas vezes, em certos momentos do ano. Esse fenômeno acontece com pequenas variações de 25 dias no nosso mundo. Se as contas estiverem certas, o Recuar da Lua, ou para facilitar, as Luas se ocultaram pelo menos 15 vezes no seu período de cura do envenenamento. Pra você entender por contagem de dias, foram 375. Aqui em Zorath, um ano inteiro.

Navi balançou a cabeça como se tivesse entendido, enquanto fazia os leves cálculos em sua cabeça. Ele tinha outras perguntas, por exemplo, como a contagem de horas era feita, se eles não possuíam ciclos de sol e lua "fixos", como Mizane mesmo explicou, mas não deu tempo, até eles serem interrompidos por uma velha que vinha de longe.
- Olá, estão interessados em adquirir algumas pedras místicas? - Disse a mulher com a voz rouca e estridente, mostrando vários colares de cristais coloridos em suas mãos com dedos finos e unhas compridas. Olhando mais de perto, Navi percebeu o quanto aquela velha se parecia com uma toupeira. Seu nariz em formato de focinho, seus olhos extremamente pequenos acima do nariz e uma pelagem grisalha que parecia percorrer seu corpo todo. Usava adereços dourados, presos na cabeça e nos pulsos, além de sua bata comprida azul marinho. O par de óculos com fundos de garrafa pareciam não fazer muita diferença para ela.
- Estamos sem dinheiro, cigana. - disse Mizane, segurando o garoto pelo braço e o arrastando pelo calçamento adiante. - Vá oferecer suas quinquilharias para outro otário!

Os dois seguiram trajeto em direção a tal taberna, e a mulher-toupeira continuou estática no lugar, como se, além de não ter visto, também não tivesse escutado o que eles falaram. Caminharam juntos por mais algumas quadras em silêncio, e chegaram ao objetivo.

A fachada da taberna parecia antiga e mal cuidada, com madeira escura claramente reaproveitada, mas também corroída pelo tempo, era ocre com manchas enegrecidas de bolor, além de ferrugem escorrida dos parafusos e adornos de ferro, evidenciando sua localização próxima ao cais. O letreiro sobre a porta no formato simples de um peixe rangia ao vento, ameaçando cair a qualquer momento. A porta de entrada, feita de madeira pesada com uma cor vermelha bem forte, tinha algumas fendas e marcas de pés, arranhões e furos de espada deixados provavelmente por bêbados brigões. Ao lado da porta, havia uma pilastra de ferro enferrujada presa ao chão, que segurava uma placa de madeira igual àquela suspensa sobre a porta, anunciando o nome "Apsu Abissal". A música era irradiante lá dentro, além de gritos e barulho de canecas sendo arremessadas. Navi segurou na maçaneta para abrir, e foi segurado no ombro por Mizane.
- Segura aí garoto! - Ela disse - Eu vou entrar. Você vai ficar aqui.
- Você me disfarçou pra isso, não? - disse Navi segurando as mechas do seu cabelo falso feito de folhas
- Não. Te disfarcei pra entrar na cidade. Preciso só garantir que ali dentro é seguro. Fica aqui, dá um pulinho no cais, mas não saia da direção desta porta. Serei rápida lá dentro. - Não esperou nem o menino responder, e já atravessou a porta.

Navi esperava tediosamente Mizane sair da taberna em frente ao cais, olhando os pescadores surreais e bizarros tirando caixas do navio com peixes e outras criaturas do mar, enquanto ele arremessava pequenas pedrinhas na água. O cheiro de maresia ali sobressaia ao de lixo e sujeira que era intenso no interior da cidade.
- Você é ele, né? - Navi escutou uma voz rouca, aguda, desgastada e estridente vindo de trás dele. Era a familiar voz da velha-toupeira. Ela não estava mais congelada no mesmo lugar, como os dois haviam deixado anteriormente. Ela estava exatamente atrás do garoto, corcunda, tremendo, segurando os óculos com uma das mãos, e um colar na outra, com o pingente quase encostado em sua pequena orelhinha.
- Você é o humano. Seu cheiro não é de humano, mas você é aquele humano. Você é o escolhido que os bruxos e profetas vivem esperando. A pedra me falou!
- A senhora está me confundindo. Sou aprendiz do Amze e... - disse Navi com a voz trêmula, se interrompendo. Será que o elixir da Mizane está perdendo efeito?
- Não, não... A pedra me falou! Você caiu de uma das fendas deixadas para trás por Argan. Você é o homem que salvará os homens. Não consigo ver muito bem, mas a pedra me falou. Eu não quero estender meu tempo com você. Pegue este colar, é meu presente.

A velha esticou seus dedos pequenos e redondos com o cordão que estava próximo a orelha e esticou para Navi, que hesitou por um momento, antes de aceitar seu presente inesperado. Agradecendo à mulher toupeira com um aceno que claramente ela não viu, olhou para o cordão e admirou os seus detalhes.

O colar consistia em um barbante sutil feito com uma trança muito fina e delicada de seda escura que sustentava uma pedra preciosa única, amarrada com o mesmo material do cordão. Um cristal vermelho intenso que brilhava com um reflexo quase incandescente quando qualquer tipo de luz batia. O cristal possuía metade do tamanho do dedo mindinho de Navi, e a sua lapidação era perfeita, suas bordas eram delicadas e retas formando um cristal comprido com arestas hexagonais. Parecia ter sido polido por mãos habilidosas por anos a fio, tornando-se um objeto de beleza desejável. Quando a luz se refletia nele, era como se ele estivesse incandescendo de dentro para fora, emitindo uma aura majestosa e pulsante. Navi colocou o colar em seu pescoço.

Quando olhou para frente, a senhora já estava indo embora. Não emitiu nenhum som, não soltou nenhuma palavra a mais, apenas saiu procurando pessoas interessadas na compra de seus pingentes, enquanto Navi voltou a se virar para a direção do oceano.

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