Capítulo 6

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Kaio e eu estávamos no shopping e tínhamos acabado de sair do cinema onde assistimos um filme da Marvel.
Ele estava contando suas opiniões sobre o filme e utilizando o pouco conhecimento que tinha sobre o universo cinematográfico também tentei opinar um pouco.
— Podemos passar aqui?
Kaio parou ao meu lado e olhou na direção para onde eu apontava.
— Claro. Não sabia que gostava de ler.
Entramos na livraria e passei o dedo por alguns livros fazendo uma careta ao ver o preço de alguns deles.
— Gosto, e muito. Ultimamente ser leitor está muito caro, então leio mais online, mas ainda gosto de ter a sensação de tocar no papel.
Olhei algumas edições de Orgulho e Preconceito da Jane Austen e também Os crimes ABC da Agatha Christie.
Kaio seguia sempre ao meu lado olhando para os livros onde eu tocava.
— Quer assistir o filme que vai ter na sessão das seis?
Tirei meu foco dos livros e olhei para o garoto ao meu lado.
— Fala sobre o que?
— Não sei. Mas o nome me chamou a atenção.
— Pode ser.
Olhei mais um pouco para os livros ao meu redor e meus olhos brilharam quando peguei uma edição de capa dura de Bom dia, Verônica do Rafael Montes.
— Gostou desse? — Kaio perguntou chegando por trás de mim.  — Fala sobre o que?
— Não faço ideia. Não leio sinopse de livros, considero a sinopse um tipo de spoiler. Mas quero muito ler esse livro, amo o autor. Ele escreve uns suspenses macabros.
— Eu compro pra você.
— O quê? — Encarei o garoto e depois o preço do livro — Não precisa de verdade. Vamos, senão não pegamos a sessão do filme.
Kaio puxou o livro da minha mão. Nem sequer olhou o preço quando foi pagar e então me entregou a sacola com ele dentro.
Senti meus olhos marejados mas me recusei a chorar.
— Obrigada. — Falei abraçando o pacote. — Obrigada, de verdade.
Abracei o garoto e selei nossos lábios durante alguns segundos.
— Não foi nada, relaxa. — Ele disse meio envergonhado. — Estava até barato.

Se aquilo pra ele é barato não quero saber o que é caro.

Kaio entrelaçou nossas mãos e fomos até o cinema.
Entramos na sala e sem nenhuma dificuldade encontramos nossos assentos.
O filme começou e letras rosas aparecem na tela:

Os sete maridos de Evelyn Hugo

Várias vezes durante o decorrer do filme senti o olhar de Kaio sobre mim, mas nem me importei, eu só conseguia focar minha atenção para aquele filme.
Kaio se ofereceu para me dar uma carona até minha casa e eu aceitei por conta do horário.
— Elle, posso te perguntar uma coisa?
— Claro.
Ele me olhou um pouco mas logo voltou a atenção para a rua.
— Você gosta de garotas?
Senti todo o meu corpo tensionar no banco. Por um momento eu poderia jurar que minha pressão baixou.
— C-claro que não. — Falei tentando ao máximo não gaguejar — Da onde tirou isso?
— É que você estava tão entretida com o filme, que pensei que pudesse ter se identificado.
— Não gosto de garotas.
— Elle, eu realmente gosto de você, queria que você pudesse se abrir comigo. E não me importo com o que você gosta, sou pansexual de qualquer forma, quem sou eu para falar da sexualidade dos outros.
— Eu… Espera, você é o quê?
— Pansexual.
— Como eu não sabia disso?
— Não contei para ninguém da escola, até agora. Pedro é um filho da puta homofóbico, mas infelizmente o pai dele é meu treinador. Até eu conseguir outro time preciso aturar aquele idiota.
Assenti compreendendo o que ele estava me dizendo.
— Eu… — Comecei — Eu sou…
Bati com a cabeça na janela assustando Kaio que não sabia se olhava para a rua ou para mim.
— Você está bem?
— Eu não consigo dizer!
Ele sorriu para mim.
— Não consegue dizer que gosta de garotas?
— Eu gosto de garotos também. Mas não consigo falar em voz alta. Tenho vergonha.
— De si mesma?
— Sim. Laís não sabe. Meu pai não sabe e ele é a última pessoa que pode saber disso porque ele é um homofóbico do caralho que me colocaria para fora de casa se descobrisse que sua filhinha indesejada não quer ser uma cristã recatada que se casa e fica trancada cuidando de casa enquanto o marido trabalha, gosta de meninas e sonha em sair de casa, ser independente, fazer terapia e ter um relacionamento saudável.
Quando percebi tudo o que soltei de uma vez, arregalei os olhos.
— Meu Deus, desculpe por ter soltado isso de repente! Você não vai contar para ninguém, não é?
Ele balançou a cabeça negando.
— Você parece muito mais humana agora.
— Como assim?
— Estelle Santos, a garota carismática e linda que todos amam, uma menina gentil que não fala palavrão e que é completamente imaculada, seu único hobby é estudar e pensar no futuro, não sabe se divertir como gente normal porque seu estilo de diversão é ler livros didáticos.
Fiz uma careta com essa definição.
— Então foi essa a personalidade que criei. Definitivamente não sou eu. 
— Então me diga quem é você.
Sorri meio constrangida.
— Não. Você não precisa saber.
Ele deu de ombros como se soubesse que algum dia eu iria contar.
— Estelle — Ele chamou —, somos amigos, certo?
— Certo.
— Que bom.
Ele parou o carro na frente da minha casa e nos despedimos com um abraço onde baguncei seus cachos recebendo um olhar mortífero dele.
Entrei em casa e dei um meio sorriso para meu pai que encarava a televisão prestando atenção em um jogo de futebol que passava.
— Chegou tarde.
— Desculpa, perdi a noção do tempo.
Ele só bufou e eu subi as escadas antes que decidisse falar alguma coisa.

— Você vai na festa do Miguel amanhã?
Ayla chegou do meu lado furando a fila da cantina até onde eu estava.
— Vou. Você vai me buscar?
Ela assentiu pegando algumas moedas no bolso e contando.
— Quer dormir lá depois? Fala pro seu pai que vai ser uma noite das garotas.
— Vou falar com ele hoje e te mando uma mensagem.
— Tá bom.
Ayla comprou três pirulitos e me ofereceu um que aceitei com gosto depois ela subiu as escadas empurrando algumas pessoas no processo e revirei os olhos vendo a cena.
Na hora da saída, Kaio chegou por trás de mim e passou o braço ao redor do meu pescoço atraindo o olhar de alguns alunos mas nem liguei.
— Vai fazer alguma coisa amanhã? Queria sair.
— Vou na festa de um amigo.
— Vou ter que arranjar outra pessoa para sair comigo.
Ele parou subitamente encarando um ponto específico e segui seu olhar me deparando com Miguel encostado em seu carro enquanto traga um cigarro esperando por Ayla.
Kaio parou de encarar e olhou para os lados temendo que alguém tivesse percebido seu pânico momentâneo. Ele abriu a porta do passageiro para eu entrar e depois entrou no lado do motorista e pude ver que estava corado.
— Aquele é o Miguel. Ele é bonito, não é?
Sua cabeça virou na minha direção na velocidade da luz.
— Conhece ele? Ele é da escola?
— Conheço, é na festa dele que vou amanhã. Ele não é da escola, já se formou, é amigo da Ayla.
Kaio balançou a cabeça devagar esperando o cérebro processar as informações que dei.
— Se ele já se formou, quantos anos ele tem? Por favor, Elle, não me diz que aquele cara é repetente.
— Ele faz dezenove amanhã. Relaxa, é só um ano mais velho que a gente.
O moreno respirou de alívio enquanto parava em um semáforo.
— Será que você não consegue me apresentar pra ele ou coisa do tipo? — Ele me pergunta sorrindo. — Sei que todo mundo acha que estamos saindo, então se não for problema pra você…
— Não é problema nenhum. Miguel está realmente precisando conhecer gente nova.
Kaio parou na frente da minha casa e depositou um beijo na minha testa em forma de agradecimento.
Depois do nosso "encontro" ficamos bem próximos, como amigos, e já faz um mês que ele tem me dado carona até em casa. Todos pensam que estamos ficando ou em um relacionamento. Mas realmente, não queremos mais nada um com o outro, percebemos que nos damos melhor sendo somente amigos.
— Não esqueça de dar meu número para aquele cara.
— Pode deixar.
Sai do carro e entrei em casa ouvindo a televisão ligada em algum vídeo aleatório  no YouTube enquanto meu irmão estava focado em desenhar.
— Demorou. — Disse meu pai da cozinha. — Não tem almoço, dei o resto da comida para o seu irmão. Também não quero fazer.
— Eu faço. O senhor não pode ficar sem comer.
Ele assentiu e eu coloquei minha mochila no chão.
Verifiquei as panelas e vi que ainda tinha feijão e um pouco de frango, então eu só precisava fazer o arroz.
Peguei o pote com o arroz, medi uma certa quantidade e coloquei em um pote para lavar.
— Para que lavar o arroz? Você só está perdendo tempo.
Notei que meu pai se sentou à mesa provavelmente para julgar meu jeito de cozinhar. Então respirei fundo antes de responder:
— Eu gosto de lavar o arroz. Acho que cozinha mais rápido assim.
Ele resmungou alguma coisa que não fiz o favor de escutar e coloquei o arroz na panela com um pouco de óleo e joguei sal por cima.
— O sal você coloca antes do arroz. Assim fica salgado.
— Obrigada pela dica.
Misturei um pouco e depois coloquei a água quente tampando a panela logo em seguida.
Enquanto o arroz secava, abri o Instagram e fiquei curtindo algumas fotos de pessoas da minha escola e comentei em fotos de pessoas da minha família.
— Vai queimar o arroz se você continuar mexendo nesse celular.
— Pai, estou aqui do lado da panela, se queimar eu vou saber.
— Não vai não. Já estou sentindo o cheiro de queimado vindo desse arroz, não vou comer isso aí não.
Desliguei o fogo irritada e peguei a colher para soltar o arroz, trinquei os dentes ao ver que ainda tinha um resto de água para secar.
Meu pai levantou e pegou um prato e praticamente pegou a colher da minha mão franzindo o cenho ao ver a consistência do arroz.
— Isso aqui está meio cru ainda. Se vai fazer com má vontade nem faça, vai que como e passo mal com isso.
Suspirei pesadamente subindo as escadas e me jogando em cima do travesseiro sentindo as lágrimas quentes rolarem.
— Será que eu nunca vou conseguir fazer alguma coisa direito? — Me perguntei encarando o buraco na parede onde era para ter uma porta, porém não tinha. — Odeio essa casa.
Virei para o lado deixando o cansaço tomar conta de mim me levando para um sono profundo.

EstelleOnde histórias criam vida. Descubra agora