Ato I

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  O suave odor de nicotina me apertava a garganta e retraía os pulmões, fazendo-me levar as mãos à boca

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  O suave odor de nicotina me apertava a garganta e retraía os pulmões, fazendo-me levar as mãos à boca. Junto ao som do televisor, exibindo o bom e velho jornal matinal, com suas notícias enfadonhas e trágicas, estavam os ruídos. Olhei para a porta de macieira com arranhões na madeira, o quarto de minha mãe, a origem do cheiro, a origem do barulho, a origem do inferno.

  De novo e de novo, me remexi na cadeira de balanço, para trás e para frente. Minhas mãos tremiam, mas havia curiosidade em meu ser. Eu sabia a verdade, mas como iria me conter de observar com os meus próprios olhos?

  Bem devagar, como um pequeno macaquinho gatuno, me esgueirei até a maçaneta, desviando dos copos no chão e os cacos de vidro. Por sorte, a porta não rangeu como de costume, ainda que sorte seja uma palavra errônea para descrever aquela cena.

  O demônio estava lá, por cima de minha mãe, assim como suspeitava. Seu olhar vidrado e sem vida parecia me observar, ela ainda estava viva? Eu não sabia, apenas espiei, saciando a curiosidade e queimando o resquício de esperança que ainda existia.

  A cada metida a cama reclamava, o enorme corpo do diabo não hesitava, não ligava, não chorava. Quando tinha vontade, ele esmurrava, quando tinha vontade ele gozava, quando tinha vontade ele sorria. Por que o demônio tudo pode? Indignada eu pensava, perplexa eu lembrava. As imagens da cruz, os sinais da oração, as palavras de milagre.

  "Que merda você tá olhando, fedelho desgraçado" O diabo me disse, rapidamente notando a minha presença soturna pela greta da porta.

  Havia ódio em seus olhos, alguma angústia, e não menos importante... Medo. Ele tem medo de mim? Por que eles tem medo? Se um demônio tem medo, por que ele peca?

  Ignorando suas arfadas, acompanhadas de um rosto suado e feio, eu me pus a rir de sua bravata em êxtase. Quem ele pensava que era afinal? Ele tinha medo... Como ousaria me enfrentar?

  "Tá rindo de que seu viadinho? Saia daqui antes que eu coma seu rabo também, essa vagabunda aqui já não tem graça a muito tempo!" Esbravejou o sete-peles, movendo seu grande corpo da cama, cambaleando em minha direção.

  "Você tem medo?"

  "Que merda tu tá falando desgraçado, eu só não te mato porque já tenho passagem, e tem coisa grande vindo por ai. Não tenho tempo pra você agora seu merda" Gritou o diabo, me segurando pelo colarinho do vestido e espirrando sua saliva nojenta.

  Aquilo parecia chato, parecia incômodo, um sentimento ruim. Mas... Ele foi embora, rejeitando meu inocente sorriso. Talvez ele não quisesse brincar comigo, talvez ele fosse como os animais da savana. Que graça tem caçar uma presa que pode te cansar? Que pode te ferir? Que pode te matar?

  Meus olhos logo se dirigiram a cama, em uma bagunça de lençóis e gozo. Esta mulher, esta presa, por que não revida? Seus olhos mortos não me suplicavam por nada, nada além da morte. Caminhei até ela, ainda sorrindo, ainda curiosa.

  "Você falava que seríamos felizes com ele... Então porque estamos no inferno?" Eu indaguei, afagando seus cabelos maltratados e suas lágrimas ressecadas.

  Ela nunca me respondia, e nem poderia mais o fazer. O inferno não existe, pois nada é eterno. A mera falácia de sofrer pela eternidade é uma piada de mau gosto. Quando a dor e a desgraça consomem a nossa alma, não resta mais nada pelo que sofrer... Sem que percebesse, ela estava morta.

 Sem que percebesse, ela estava morta

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𝙸𝙽𝙳𝙸𝙶𝙾 𝙷𝙴𝙰𝚁𝚃Onde histórias criam vida. Descubra agora