Prólogo - Pílulas rosa.

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Minhas mãos tremeram conforme eu observava o sangue deslizar quente e pegajoso entre meus dedos, a faca pesou na finura deles, e então caiu no chão e fez um barulho agudo e agonizante. Senti algo descer queimando no meu rosto e minha visão tornou-se um grande borrão. Meu vestido azul marinho com babados estava encharcado de sangue, grudado, infelizmente, a minha pele.

– Me desculpa, desculpa.

sussurrei, sabendo que as palavras eram apenas palavras. E elas não revivem pessoas. Caí de joelhos no chão e balancei os cadáveres, de papai e mamãe, na esperança de acordá-los do sono da morte. De repente eles se levantaram, mamãe estava com uma aparência horrível, as tripas dela pularam para fora do corte horrendo em seu estômago e lhe faltava um olho na face. Papai estava pior, o rosto completamente desfigurado, mal havia sobrado dentes na sua boca, e mesmo assim ele sorriu pra mim.

Estremeci.

– Mamãe, papai?

Indaguei inutilmente. Eles não falaram nada, apenas se aproximavam de mim cada vez mais. Mamãe segurou meu braço e o apertou, gritei e gritei em plenos pulmões para alguém, qualquer pessoa, me salvasse. Até esperei que meu amigo surgisse novamente e me levasse para longe deles. Facilmente ela moveu meu pequeno corpo para cima, me desesperei quando não senti meus pés no chão. Me faltava um calçado, eu não sabia onde ele estava.

– Mamãe, me desculpe, por favor, prometo nunca mais fazer isso!

O rosto da mamãe se contorceu numa careta feia, o batom vermelho de seus lábios estava borrado, suas roupas e cabelos estavam desengonçados e sujos do sangue preto coagulado, e ela sorriu de novo. Então escutei um barulho que fez meu coração gelar e um calafrio percorreu minha coluna, papai pegou a faca do chão, a que eu usei para matar eles, e arrastou pela parede. O som fino da lâmina arranhando contra o papel de parede descascado fez meus ouvidos tremerem. Mamãe segurou meus dois braços e os colocou atrás de minhas costas, até tentei ver o papai, mas as lágrimas não deixaram. Gemi baixinho, sentindo dor em todo meu pequenino corpo.

Papai gargalhou, uma risada sinistra e arrastada. Seus lábios ficaram vermelhos como o batom borrado de mamãe e as pontas carmesim que puxava o final da boca delinearam até ambos os olhos, que brilhavam num amarelo intenso, a linha vermelha ultrapassou as sobrancelhas. O rosto desfigurado ficou, aos poucos, branco e os cabelos castanhos se tornaram ruivos, como os de meu amigo. Aquele não era meu papai. Papai estava com feições de palhaço de circo, e este finalizou com a lâmina em meu coração.

***

Sentei na cama ofegante, meus cabelos estavam grudados na testa pelo suor que descia queimando pelo meu rosto, senti um enjôo percorrer meu estômago. Aperto o tecido do vestido totalmente branco, sem figuras, e trouxe a mão para mais perto do meu peito, onde meu pobre coração batia num ritmo acelerado. Era o maldito pesadelo toda vez. Olhei ao meu redor em busca de qualquer coisa que fosse reconfortante, mas no quarto alvo não havia nem uma flor para fazer companhia, nada pra me machucar. Passei as mãos em meu tórax, procurando qualquer ferimento que papai teria causado, mas não tinha nada.

Me levantei da cama e tive que me segurar na borda do colchão para não cair, senti as pernas totalmente bambas, por um segundo pensei que tivesse urinado de medo. Mas eu estava bem. A enfermeira logo chegaria com meus remédios, mas eu estava com tanta vontade de fazer xixi que apenas fui ao banheiro.

Ao voltar senti falta de alguma coisa, ou melhor, alguém. Um ser. Meu amigo imaginário, Pennywise. O palhaço idiota ainda atormentava meus sonhos, desde criança até agora, nunca deixei de vê-lo rastejando pelo meu mundo dos sonhos.

Esquizofrenia.

Foi o diagnóstico designado a mim, quando eu era mais jovem e usava meu vestido azul marinho, com babados, o favorito. Pennywise estava na sala da consulta, mas apenas eu conseguia enxergar o palhaço, insisti e insisti que ele estava ali. Mas os adultos não viam nada. Me sentei na cama e esperei, balancei meus pés com impaciência.

A porta se abriu repentinamente, me assustando um pouco. Mas era apenas a enfermeira Castano. Eu adorava vê-la todos os dias, os fios pretos dos seus cabelos me fascinavam. Eles eram como a noite lá fora, da qual eu me esqueci com o passar dos anos.

– Bom dia, Max.

Ela sorriu, e os dentes dela eram tão brancos que pareciam estrelas.

– Bom dia, Castano.

Castano colocou os remédios numa bandeja e encheu o copo com água. Ela me encarou e apontou com os olhos escuros para os remédios rosa. Fechei a cara, gostava do bom dia, mas não gostava dos remédios. A enfermeira veio até mim e eu encarei ela, impassível.

– Max, faça isso por mim, sim? Quanto mais cedo você tomar, menos problemas você terá por aqui.

– Tudo bem. – Eu disse, por fim.

Não foi necessário que eu me levantasse porque ela pegou a bandeja e trouxe até mim, agradeci aos céus por isso, minhas pernas estavam fracas por causa do pesadelo. Eu segurei as pílulas rosa com as pontas dos meus dedos magros e coloquei na boca, em seguida tomei a água que facilitou a descida. Quase me engasguei. Castano sorriu para mim. E eu não sorri de volta.

Pennywise, Meu Amigo Imaginário.Onde histórias criam vida. Descubra agora