Capítulo 3 - Robert Gray (1/2)

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Mergulho o pincel na tinta vermelha, mas num tom mais escuro, e pincelei a tela branca. A superfície meio áspera da tela foi preenchida pela cor. Eu não sabia exatamente o que eu queria fazer, mas tudo que se passava na minha mente tinha cores quentes. Vermelho, amarelo e laranja. Há também um branco simplório, bem no fundo de minha alma, alvo, limpo. Acreditei que tinha salvação para mim, quando as dosagens das pílulas rosas diminuíram. E então os pesadelos voltaram. Algo ruim voltou para Derry.

Vinte e sete anos, por vinte sete anos tento esquecer meu passado. Meus pais, meu pecado. Larguei o pincel e toquei na tinta fresca na tela, e senti a textura grossa. O sangue humano também é assim, carmesim escuro e denso. Lembrei do que sonhei, um dia antes do doutor Nicholas falecer. Aperto a tinta na mão, esmagando como se fosse um bichinho nos meus dedos.

Em meu sonho ao invés de eu matar meus pais, eles que me mataram. Estranhamente esqueci disso no outro dia, quando me consultei com o estranho Robert, esqueci da sensação de sentir a faca cravada no peito e depois deleitar-se nos braços da morte. Mas meu pai tinha feições de meu amigo, ele estava se transformando em Pennywise. Não era a primeira vez que eu sonhava com o palhaço, às vezes ele aparecia em meus sonhos para jogar aranhas em mim, e em outras ele me deixava rodear meus braços em sua cintura e apertar seus pompons.

Coloquei meus dedos na tinta laranja e começo a fazer traços de cabelo, um traço feio e grosseiro, obtendo uma forma engraçada. E depois o branco, que ficou manchado de vermelho e laranja, se moldando em um rosto. Uma face conhecida por mim.

– Me diga, senhor Pennywise, gostou do seu retrato? É um belo palhaço.

Falo sozinha, sem esperança do meu amigo imaginário responder, eu queria entender meus próprios pensamentos. A sala estava quase vazia, apenas alguns pacientes que não me importo em saber os nomes. Só me lembrava dos seus números, achando engraçado a ironia de parecerem carnes de açougue. Apenas números exibidos e admirados pelo vidro, esperando para serem devorados pela loucura. Me inclinei para mais perto do retrato, agora eu delineava o sorriso, de que bem me lembrava ser debochado. Pennywise tinta dentes de coelho, engraçados.

– Ótimo desenho, Max.

Disse uma voz atrás de mim, me viro rapidamente. Era Robert, de novo. Levantei do banquinho onde estava sentada e fui para trás do cavalete, na tentativa de me esconder. Esperei alguns minutos, respirando bem fundo, não escuto nada então ele já foi embora. Posiciono meus dedos sujos de tinta na tela e olho disfarçadamente para frente, deixando apenas minha testa e olhos à mostra. Rob se foi. Suspiro aliviada.

– Procurando alguma coisa?

Virei-me de forma tão rápida que me desequilibrei e cai no chão, tentei segurar o cavalete mas ele acabou vindo junto. Senti minhas costas doerem de forma insuportável quando atingi o piso. Tiro os meus fios castanhos escuro do rosto e encaro o doutor Rob que estava de pé, com uma postura impecável e o jaleco branco irritantemente perfeito, ele me mostrou um sorriso.

– Acho que nossa consulta mais cedo foi suficiente. – Me levanto, erguendo o cavalete logo em seguida. – Me deixe em paz.

Olhei para Rob pelo canto dos olhos, irritada, senti meu rosto esquentar de raiva. Não gostava de Rob, tão pouco da sua aparência perfeitinha. Não faz nem um dia que eu o conheço e já o odeio. Porém, vi algo estranho nos olhos dele, a pupila dilatada de novo, a íris azul quase sumiu, restando só a escuridão.

Senti a raiva espairecer aos poucos, enquanto eu encarava Rob, ele não estava sorrindo, apenas me olhava de forma impassível, como se nada pudesse o atingir. O silêncio começou a ficar incômodo, ele não falou nada, mas ficou parado me olhando. E eu não conseguia me mexer, porque estava presa no mar e céu dos olhos azuis. Quando olho pra Rob, sinto que estou flutuando. Por um milésimo de segundo, eu vi a íris mudar de cor, o amarelo substituiu o azul de forma rápida, imperceptível. Mas eu percebi, eu vi, tenho certeza. Minha boca se abriu em choque, e os lábios de Rob se delinearam num sorriso divertido.

Meu corpo estremeceu quando o doutor tocou minha bochecha, limpando uma mancha de tinta que eu sequer sabia que estava ali. A mão dele era fria como gelo, e firme como pedra. Os dedos sujos delinearam minha carne macia quando ele puxou a tinta, e me mostrou a cor carmesim, o vermelho.

– Como seu médico, sugiro, Max, que continue se esforçando para lembrar.

Robert disse de forma calma, o tom aveludado da voz acariciou meus ouvidos. Meu corpo relaxou completamente.

– Lembrar-me do quê, exatamente?

– De tudo. Sua mente fraca te impede de ver memórias doloridas. Mas você precisa se lembrar, Max.

Rob limpou a tinta vermelha no jaleco branco, na roupa impecável, por que ele andava sempre bem arrumado quando se está no meio de tantos doidos? Até Castano aparece exausta e desarrumada algumas vezes. E ela é uma mulher linda.

Encarei a mancha vermelha. Senti minhas mãos suarem. Rob, de forma imprevisível, apertou meu pescoço. Arregalei os olhos, sentindo as mãos se fecharem e tomar todo o precioso oxigênio, minhas mãos se levantaram automaticamente e apertaram o rosto de Rob.

Mas Robert, não era Robert. Agora eu estava num local completamente diferente, apertando o rosto de outra pessoa. Minha boca se abriu e eu estava sussurrando coisas impuras, as palavras sujas saiam aos montes sem minha permissão, sem meu controle. Olhei para minhas mãos, eu estava segurando uma caneta, ela era preta com detalhes em prata entalhados. Naquele momento, eu entrei em dualidade, uma parte de mim sentia ânsia ao ver a caneta suja de sangue com pedaços de carne que não conseguiam se soltar, e a outra sentia uma satisfação imensurável. Uma sensação de adrenalina constante em sentir o líquido denso escorregar pelos dedos.

Eu tentei absorver a cena, olhar ao redor, mas minha cabeça não se movia, a única coisa que eu consegui ver era alguns quadros pendurados na parede, mas estava escuro demais para distinguir qualquer figura, nada além disso. Me senti uma marionete, fazendo coisas que não queria fazer. E sendo manipulada pelas cordas invisíveis, me movi para mais perto do corpo, sentindo minhas coxas desnudas pelo vestido hospitalar tocarem contra o tecido das pernas do cadáver quando me sentei em seu colo. O morto ainda não estava morto, por que se mexia e gemia em agonia.

Minha cabeça se moveu para frente, aproximando nossos rostos e encarando a pessoa nos olhos. E a parte sã de mim gritou, berrou, e remexeu no meu interior. E a outra sorriu, quando deslizou os meus dedos finos pelo rosto do homem até o pescoço, onde jorrava sangue que o impossibilitou de se mexer. A mão que eu segurava a caneta se ergueu, impiedosa, e a ponta perfurou a órbita verde do homem. O cadáver não exibiu qualquer som, ou gemido, porque a caneta penetrou fundo no cérebro, porque eu empurrei a caneta.

Joguei a cabeça para trás, gargalhando, senti a êxtase percorrer todo meu corpo, uma sensação de choque, pequenos raios que percorriam minhas veias. Abracei o homem, o morto, e fiz cafuné em sua cabeça, os fios encaracolados do cabelo se prenderam nos meus dedos sujos de sangue fresco. Mas não me importei, só queria ficar ali, até o calor do morto ir embora e só sobrar uma casca vazia.

Murmurei uma canção com os lábios.

– Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração. Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração.

Outra voz se fez presente, mas não me virei, eu sabia quem era. Ouvi ele gargalhar, e eu soltei uma risadinha baixa enquanto continuava.

– Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração.

As lágrimas desceram pela minha face imunda e a risada ficou ainda mais alta.

– Ele soca postes de montão e insiste que vê assombração…

Pennywise, Meu Amigo Imaginário.Onde histórias criam vida. Descubra agora