Sobre dependências
Eu não percebi, nunca percebi. Também nunca assumi porque... por que assumiria algo que não sou? Que não faz parte de mim? Mas fazia; eu me doava, tentava consertar pessoas e fugir de mim me enfiando nos espaços vazios delas que eu, em uma ilusão, esperava preencher pra fugir de um bem maior que era o meu.
Eu me iludia em amizades tóxicas com dependências e doenças porque os outros eram melhores do que eu, mereciam sair dessa mais do que eu merecia e eu amava-os mais do que a mim mesma pois nunca tinha me amado de verdade, então como poderia saber, como poderia sentir o gosto desse Amor? Amor, substantivo que nesse caso é próprio porque é meu e portanto, maior do que os outros. Maior do que os outros por mim, maior do que tudo que eu receberia olhando pro lado e não pra frente, pro espelho que me aguardava esperando minhas perguntas sinceras e loucuras guardadas e expostas.
Eu me escondia nessa dependência tão fundo, meu orgulho, raiva, medo, ansiedade e paranoia me levavam à escuridão pois não queria assumir que eu vivia por outro alguém que não era eu. Porque mesmo não sabendo na consciência, o meu inconsciente sabia que eu merecia. Não queria assumir meu problema porque não queria e nem via a necessidade de conserta-lo. Não era isso, o que eu sentia era amor, o mais puro amor que me permitia pensar nos outros mais do que em mim em um pensado impensado ato altruísta que me escondia por trás da bondade que essa palavra carregava.
Porque era isso que eu era na verdade, boa demais, legal demais, gentil demais, educada demais e melhor amiga demais. Tudo demais e nada a mais pra mim. Tudo legal pros outros e nada legal pra mim. Sendo vista por outros - embora não enxergada - e não sendo nem vista por mim.
Mas eu achei que essas partes de mim fora de mim, essas extensões de mim, me enxergavam. Eles eram eu também, afinal. Eu os considerava partes de mim, partes físicas que eu poderia sentir se quisesse, que eu sentia quando queria (e quando não queria também) e que saíam de mim quando eu não queria; e quando isso acontecia era o que mais doía. Quando eles saíam de mim, me abandonando em meu odioso corpo e mente poluída, eu sentia em meu âmago, nos espaços vazios em que os coloquei para que eles pudessem preencher da maneira que quisessem pois eu não conseguia preencher de maneira alguma.
E é injusto falar que são pessoas ruins, não são. Eu sei que não. São pessoas que também me mostraram que eu poderia ser eu, que eu poderia ser quem eu quisesse ser até. Mas só enquanto estávamos juntos, pois eu não podia levar suas palavras comigo e enfia-las em meu peito vazio. Eu sei que elas queriam meu bem, éramos amigos de verdade apesar de tudo e é isso que torna as coisas complexas.
As coisas se tornam complexas porque eu não posso deixar de reconhecer o bem que me trouxeram apesar do mal que causaram, dos momentos que, apesar de extremamente danosos pra mim, me tiraram um pouco da minha realidade fodida e isso era mais do que o suficiente, porque eu podia sentir o amor deles também. Sempre foi verdadeiro, sempre foi forte e sempre foi dependente; dos dois lados.
Eu não sou a vítima e nem a culpada, nenhum de nós é. Só fomos bagunças que se encontraram e nós que se ataram de modo que eu não sabia mais onde eu começava e eles terminavam. Tenho pra mim que eles se embolaram em meus nós também, pois também sou toxica, sofro com minha doença e digo coisas impensadas. Mas pra eles quase nunca tive essa coragem, por considerar a voz deles mais alta que a minha. As coisas impensadas e que causavam dor eram direcionadas à outra parte da minha vida, à parte da minha vida que eles não estavam lá pra ver e que me machucou mais do que eles jamais poderiam.
Mas eu poderia fazer o que quisesse pra evitar, a maior dor sempre era minha. Era minha e feita por mim, por eles e por todos os outros que eu permitia que o fizessem só porque eu merecia. Cortes eram feitos porque eu merecia, drogas eram ingeridas porque eu não ligava e tentativas de morte aconteciam porque, no final, eu não aguentava.
Pra reconhecer meu problema, preciso reconhecer o deles também. E pra reconhecer que me machucaram preciso reconhecer que os machuquei também. E não há balança que pese essas dores, não há jeito de definir quem é mais culpado ou não porque no final, não somos. Só sofríamos e sofríamos, presos em um ciclo vicioso que nos arrastava e nos levava à deriva tal qual violentas ondas no mar.
Eu tinha o meu oceano, eu o tenho e eles também tem o deles; que estava e talvez ainda esteja tão agitado quanto o meu estava e ainda fica pois não estou curada, como posso estar se isso vai durar para o meu sempre?
Minha doença vai durar enquanto eu durar, mas eu dependo só de mim agora, assim como espero que eles também. Assim como espero que o oceano deles esteja tão calmo e sereno - como o meu escrevendo esse texto - que eles possam, também, encontrar sua Atlântida.