Único.

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É 31 de março, com as cortinas azuis balançando com a brisa do vento, com o corpo coberto de uma fina camada de suor por causa do ar-condicionado quebrado, o toque de Andrew em seus quadris aquecendo ainda mais a pele. É uma manhã calma e Neil não consegue evitar a forma como seu coração bate um pouco mais forte dentro do peito, o tum-tum-tum constante, aterrador até.

   É o aniversário de Neil Abram Josten, o aniversário de um sobrevivente. A sensação que vem ao saber disso não parece suficiente, não parece real.

   É real. Ele sobreviveu, ele está vivo.

   Vivo, vivo, vivo.

   Isso vai além da superfície simbólica que as pessoas veem. Se sobreviver foi difícil, viver é mil vezes pior, não que Neil deseje a morte, ele pode tê-la aceitado como uma amiga, um destino, um final inefável para seu sofrimento, mas agora não há necessidade de ansiar. A morte não é a mais sua companheira cruel, a vida é. Acordar é um peso às vezes, a pele coçando com a necessidade de correr, correr, correr, um coro de vozes muito parecidas com a de Mary gritando dentro de sua cabeça que não é seguro, que ficar parado é um erro, que ele não pode continuar aqui. Nesses dias, ele consegue sentir o ardor dos tapas, as unhas arranhando seu couro cabeludo e o sangue quente escorrendo das feridas abertas. Nesses dias, o fantasma de Mary Hartford o assombra com força total. Nesses dias, Andrew precisa segurar sua nuca com firmeza e afirmar todas as verdades que eles sabem.

Pôr do sol. Morte. Abram.

   Viver é difícil, complicado. Há tantas camadas que precisam ser dissecadas todos os dias, tantas mentiras para desfazer que o temor de não sobrar nada em suas células que o faça um humano, que o faça Neil, é imenso. Viver é se despojar das partes de sua armadura de titânio, é transformar seu sangue de platina, frio e mórbido, em algo quente e menos monstruoso, menos automático. Deixar a alienação que preencheu sua existência durante tanto tempo trás.

   Crescer e se tornar algo além de um menino de madeira é doloroso, deixar de lado o Pinocchio e acolher o milagre da fada azul, a sensação de perder algo essencial que não existiu, o medo de finalmente ser. Reconstruir seus pedaços e dá-los de mão beijada para as raposas, para sua família, corrói cada lição que foi espancada em seu cérebro, marcada em sua pele, gritada em seu ouvido. Neil ainda pode dizer cada uma dessas regras, cada instrução minuciosa que aterroriza sua mente nos piores dias.

Não fique.

Não conte a verdade.

Não deixe rastros.

Não faça conexões, Abram! Você me ouve? Não deixe que te fazem reconhecível.

Nunca pare de correr, isso vai te matar.

Você não tem um lar, ouviu, Nathaniel?

Não confie em ninguém, VOCÊ ME OUVIU?

OUÇA-ME ABRAM! É PRO SEU PRÓPRIO BEM.

NÃO SEJA ASSIM ABRAM, UM BEIJO É MORTAL.

NÃO OLHE PARA AQUELE GAROTO, SUA CRIANÇA ESTÚPIDA.

ESTÚPIDA. ESTÚPIDA.ESTÚPIDA.

   Todos aqueles perdões também ecoam, todos os “eu te amo Abram, não te machuco porquê quero, você me obriga a ser assim”, os “tão parecido com ele” sussurrados com desgostos durante a noite em motéis pútridos, a imagem grotesca de sua mãe abaixada à sua frente, as mãos apertando freneticamente seus cachos enquanto tingia a raiz de cores escuras suficientes para esconder o ruivo remanescente de um passado cheio de sangue e dor.

Darling, you're leaving.Onde histórias criam vida. Descubra agora