Capítulo 4 – um pouco da verdade
Igon
As gotas da chuva batiam no vidro da lanchonete. Muitas pessoas haviam entrado para se abrigar, já que o tempo mudou de repente. O ambiente, porém, era agradável. A música calma tocando ao fundo, o cheiro do café e do chocolate quente, e a presença do meu amigo, se deliciando com um simples prato de panqueca. Como se aquele fosse mais um dia normal, e tudo que aconteceu fosse uma alucinação minha.
Zach olhou para mim, após limpar os lábios com o papel. Abriu um sorriso. Seu olhar era de completo mistério, e parecia estar se divertindo com a situação.
- O que você está pensando? - Ele me perguntou. Apesar de ter certeza que já sabia, respondi.
- Quero entender o que está acontecendo. - Fui direto ao ponto.
- Bom. Há umas regras, uma delas é não falar sobre isso, principalmente com humanos... - olhou para baixo por um instante. Porém assim que olhou para mim novamente, seus olhos brilhavam intensamente, hipnotizante porém assustador de um certo jeito. Senti um arrepio percorrer minha espinha. - Mas você não é completamente humano, não é?
- Não sou? - Perguntei, confuso. Se não sou humano, o que sou?
- E essa marca no seu pescoço, indica que você já teve contato com um abismal. - Falou, apoiando o rosto em sua mão, sorrindo divertido.
- Foi o Clirius. - Falei. Seu rosto se iluminou na hora. - Você o conhece?
- Mas é claro! Como não conheceria? - Animou-se. Eram amigos? - O vejo de tempos em tempos.
- Zach, por que me trouxe aqui, se não pode falar nada? - Perguntei, ainda me recuperando do susto que tomei mais cedo.
- Você não quer voltar para casa agora, quer? - Ele falou, acertando em cheio. Não queria voltar para casa. Sentia que Gus apareceria novamente, e eu não queria vê-lo ainda. - Eu sou seu melhor amigo ainda. Não vou deixar que volte se não se sentir seguro para voltar.
- Obrigado...- Agradeci, me sentindo mais seguro. - Eu só queria entender o que está acontecendo. Me colocaram nessa situação, e agora não me falam nada.
- Entendo sua frustração, Misael. - Falou, me olhando, calmo. - Mas não tenho autoridade para te contar exatamente o que está acontecendo. Farei o meu melhor para responder o que você quiser saber, mas não sou exatamente o melhor para te contar tudo.
- Certo...- Concordei. Se é uma situação séria, Zach também estaria em risco, e não queria colocar meu único amigo em risco. - Só... Gus, Clirius, você... O que vocês são? E o que é esse negócio de regras, e reinos?
A conversa na lanchonete foi longa. Zach não pode me contar com detalhes, e muitas das perguntas, preferiu evitar responder. Os três reinos, os seres, a rivalidade...
"Pense neles como três dimensões diferentes. Aurora fica em cima, Humanidade fica no meio, Abismo fica em baixo. Há uma pequena parte onde os três se cruzam, e qualquer um, com ou sem habilidades, é capaz de atravessar. Chamamos essa parte de fronteira. Aurora é o reino claro, os seres claros precisam de luz para se manterem sanos. Assim como o Abismo é o reino escuro, e precisam de sombra."
- E você é de Aurora? - Perguntei, ainda perdido.
- Isso! Você pegou! - Zach virou para a janela, observando as nuvens. - Fica muito alto para se ter nuvens.
Agora mudou em seu tom de voz. Parecia estar emotivo, lembrando de Aurora. Lembrei-me de quanto Zach era apaixonado por nuvens e chuva. Agora entendo o motivo, e também, suas brincadeiras.
- Me lembro o dia que fugi. - Contou. - Corri o mais rápido que pude ao ver os clarões, fui para a parte mais baixa de aurora, quase nas fronteiras. Presenciei as poucas gotas de chuva e apareciam de vez em nunca. Quando senti as gotas tocarem minha pele, me senti livre. Era aquilo que queria para minha vida.
Sua expressão mudou. Agora triste, revoltado.
- Anjos não escolheram ser claros. Não somos como Deuses. Estar em Aurora é como se tivesse sido condenado. - Falou
- E Gus? - Perguntei. - Ele é como você...
- Não, Elyon não é um anjo - Corrigiu. Elyon? - Ele é um Deus... Assim como todos os outros. Corrompido.
- Como assim? - Perguntei confuso. Mas Zach chacoalhou a cabeça. Talvez não pudesse falar sobre.
- Há anos atrás, fizemos um acordo de paz. - Contou, voltando à sua expressão normal, feliz, após tomar um gole de café. - Esse acordo diz respeitar a humanidade, e manter contato entre os reinos apenas para fins comerciais. Não devemos ter contatos uns com os outros fora isso.
- Então por que estão aqui? - perguntei. - Não estão desrespeitando o acordo?
- Não apenas esse, mas um ainda mais importante... - Deu outro gole em seu café. Estava esperando que fosse me explicar esse outro acordo, mas sem sucesso. Zach parou de falar ali.
Não me contou muito. Não sabia tanto sobre Clirius, apenas que ele era um demônio, herdeiro do trono do Abismo, assim como o próprio ser já havia se gabado antes. E após nossa longa conversa, Zach me levou de volta para casa.
Andamos em passos lentos, para que eu demorasse ainda mais para chegar. Durante o caminho, Zach me contou sobre suas viagens ao redor do mundo, e situações engraçadas, para descontrair. Consegui abrir um sorriso e soltar uma risada ou outra, e logo chegamos em frente ao prédio onde eu moro.
- E chegamos, vai ser 17$. - Brincou, como se fosse um taxista. Dei um leve tapa em seu braço e rimos. Olhei para minha janela, e respirei fundo, voltando a olhar para Zach.
- Você não pode ficar? - Implorei. O cacheado soltou uma risada.
- Por mais que seja muito difícil ficar longe de mim, e que eu esteja lisonjeado por seus sentimentos... - Falou sorrindo, me fazendo sorrir também. - Infelizmente, tenho que voltar e reportar algumas coisas.
- Certo... - Falei. Nos despedimos, e vi Zach caminhar e estender a mão para o céu, como se chamasse alguém. Seu corpo começou a desvanecer no pequeno feixe de luz que conseguiu espaço entre as nuvens, e antes que desaparecesse completamente, ouvi:
"Um ser apropriado pode te contar sobre!"
Entrei no prédio. Enquanto subia as escadas, pensava em tudo. Ainda não conseguia entender que era realidade. Tudo que Zach falou parecia ter saído de um livro. Entrei em meu apartamento, finalmente vendo que estava vazio. Me senti aliviado. A chuva finalmente retornou, e suas gotas voltaram a bater contra o vidro da janela. Me lembrei de Zach.
"Quando senti as gotas tocarem minha pele, me senti livre. Era aquilo que queria para minha vida."
Quero e preciso saber mais. Sobre tudo, e como eu estou envolvida nesta história. Tenho muitas dúvidas, que Zach não pode esclarecer. Não quero falar com Gus tão cedo. Me perguntava quem me explicaria então. Minha dúvida recebeu uma resposta bem cedo. Assim que senti o formigamento em meu estômago voltar, e a ferida em meu pescoço queimar. Ouvi os passos atrás de mim, mas sua presença não me assustava. Estava aliviado que não era Gus. Virei para trás, nossos olhares se encontraram, mais uma vez.
Clirius.

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ADND
RomanceMisael sempre teve dificuldade em se sentir aceito. Não importa em que lugar desse mundo que estivesse, não sentia que pertencesse à ele, fazendo com que se deslocasse de tudo e todos, até mesmo se afastando de sua família. Um dia, a vida de Misael...