Memórias da Explosão

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Prologo
Memorias da Explosão


Lembro-me exatamente de onde estava no momento em que a explosão varreu toda a superfície terrestre. Era por volta de 3021, então eu deveria ter dez anos. Naquele momento, estávamos em família no centro da cidade, fazendo compras para o aniversário surpresa do meu irmão. Seu presente seria um violão, o mais barato que poderíamos comprar, mas não por falta de vontade de adquirir um de maior qualidade. Foi nesse momento que vi um enorme clarão, senti minha pele queimando, mas nada ocorreu comigo. Não posso dizer o mesmo dos meus pais... tenho a marca que seus corpos queimados deixaram em minhas mãos em forma de cicatriz.



Nunca mais vi o rosto do meu irmão depois daquele dia, e sequer me lembro mais da sua aparência, assim como os de meus pais são lembranças vagas. Essas são as consequências de se viver por quase um século, não é? No entanto, ainda lembro de algo que me faz recordar do meu irmão: uma música. A melodia que o ouvi tocar no velho violão desafinado, rodeado pelos nossos cachorros, com o cheiro de carne vindo da cozinha e o som da televisão transmitindo um jogo de futebol. As notas eram perfeitas, mesmo com um intrumento horrível. Tocadas para alguém como eu, uma pessoa que desconhecia até então o valor da arte, das melodias e dos sentimentos. Quando vi meu pequeno irmão criar um universo com seus dedos calejados e com as melodias, nos subúrbios de uma metrópole, para um bando de ignorantes que não entendiam o seu valor... Naquele momento, eu entendi o que era a arte.



Agora estou aqui, sentado no centro das ruínas da cidade onde vi tudo mudar, começar e acabar. Tocando a mesma música no violão que deveria ser do meu irmão, enquanto olho para as chamas da fogueira. Assim como o instrumento, a cidade mudou e eu também, irmão. Agora, tudo está remendado por uma tecnologia que, mesmo estando misturada à minha carne, não entendo. Só sei que foi ela que permitiu o meu presente para você durar por tanto tempo e por deixar viva a lembrança que você me deu. A melodia melancólica e arrebatadora, que ao chegar em suas partes finais, preenche a alma com o mesmo sentimento de Dante ao ver Virgílio. Seguindo cada acorde até Beatriz no paraíso. No entanto, essa é a única parte à qual não consigo replicar.



Diga-me, irmão, diga-me, mesmo que com meus cinco anos a mais, agora com noventa e cinco anos, que deveriam ter me tornado mais sábio que você. Diga-me, meu irmão: como criar notas tão belas? Como, em seus cinco anos, viveu tanto? Como viveu e descobriu mais do que eu? Lamento. Afinal, eu deveria ser o exemplo, mas vejo-me aqui, admirando sua obra tão perfeita, embora com imperfeições que nem mesmo este instrumento, que assim como eu, viveu por séculos, consegue replicar. As suas imperfeições são tão únicas. Seu som banha a cidade caotica fruto da destruição.


Exiled: The Sound Of Memory Onde histórias criam vida. Descubra agora