Nada havia de novo na vigia de Quaere, um dos insetos conhecidos como vagus. Assim como em todos os dias, ele caminhava pelas pedras frias do palácio da Rainha Sombria; andando por longos corredores e conversando com seus subordinados. E assim como em todos os dias, estava muito escuro. Desde que Quaere tinha lembrança, era um pequeno inseto vivendo nas sombras de Valescuro. Os dias eram sombrios e as noites ainda piores. Mas isso era normal para ele, pois nunca vira o sol brilhando por cima das copas das árvores, ou vira uma bela noite de luar. Os insetos de Valescuro estava acostumados a perceber o mundo mais pelos cheiros e sons que suas antenas captavam.
— Capitão Quaere - os guardas à porta do palácio o cumprimentaram, e Quaere soube pelo som de suas vozes e pelos seus cheiros característicos quem eles eram. Um deles era de sua própria espécie; um vagus. O outro era uma papa-moscas; uma das várias espécies de aranhas que habitavam Valescuro.
— Algo a reportar? - Quaere perguntou, parando diante deles.
— Nada, senhor - respondeu o vagus - Tudo está normal.
Se havia uma região desolada na Floresta de Gaia, esta era o Valescuro. Se a escuridão permitisse que os insetos que ali habitavam enxergassem o lugar onde viviam, perceberiam que suas casas caíam aos pedaços, com paredes rachadas e com a palha de seus tetos se desfazendo. Veriam que as estátuas de suas praças estavam trincadas e quebradas, e que mesmo o grande palácio onde Atlanta, a Rainha Sombria, habitava, estava ruindo de descuido. Mas eles nada viam, pois suas antenas não sentiam o cheiro das rachaduras, e quando as tocavam com os dedos, não havia nada que lhes dissesse que ali havia algo errado.
Quaere seguiu para a praça do palácio e permaneceu por ali, ouvindo o silêncio da noite. Não havia nenhum barulho além do som da brisa refrescante, e por isso sentiu-se grato. Olhou para cima, fitando a escuridão, e por um segundo pensou ter visto um pequeno ponto brilhante. Passou um longo momento olhando para cima na esperança de ver mais uma vez o ponto luminoso, mas este não voltou a aparecer.
— Capitão Quaere! - ouviu uma voz longe de si - Onde está o capitão?
Quaere seguiu a voz e o cheiro até chegar em um vagus que soube ser um dos patrulheiros da cidade.
— Estou aqui - Quaere respondeu ao se aproximar - O que houve?
— Senhor, prendemos dois vagus na aldeia leste.
— Por que razão? - Quaere perguntou.
— Por propagação de luz e posse de objetos proibidos.
Quaere seguiu o outro vagus pelos corredores do palácio e desceu longas escadas até as masmorras, provavelmente o lugar mais sombrio de Velescuro. As masmorras eram feitas para os piores criminosos; aqueles que tentassem sair de Valescuro; pessoas que criticassem a Rainha Sombria; quem quer que ousasse tocar músicas com mais de três notas musicais e principalmente quem mantivesse posse de livros ou acendesse luzes sem permissão.
Na cela em que foi levado, Quaere pôde sentir o cheiro de dois vagus, um homem e uma mulher.
— Quem são vocês? - Quaere perguntou.
— Senhor, misericórdia - disse a voz chorosa e cheia de desespero do homem - Lamentamos nosso crime. Juramos que não vai se repetir.
— Estão sendo acusados de acender luzes em Valescuro - Quaere disse, com a voz severa - É certo que sabiam que isso é terminantemente proibido.
— Nós sabemos - foi a mulher quem falou - Foi um deslize. Um erro. Seja misericordioso.
Quaere voltou-se para o patrulheiro que o acompanhava.
— Qual o objeto proibido que eles portavam?
— Era um livro, meu senhor - o vagus respondeu, afastando-se e depois trazendo consigo os objetos - Eu já contei. Este tem trinta folhas.
No reino de Valescuro era proibido qualquer escrito que tivesse mais de uma folha, e os únicos que tinham permissão de ler eram os oficiais, em quartos fechados onde podiam acender luzes apenas por tempo suficiente para a leitura. Quaere pegou o livro e o folheou. Era pesado e lhe causou uma sensação nova, pois nunca tinha pegado em um livro antes.
— Terei que avaliar esse livro nas salas secretas - Quaere disse ao patrulheiro - Enquanto isso mantenha esses dois aqui.
O capitão deixou as masmorras, fazendo o máximo para ignorar os pedidos de piedade dos prisioneiros. As salas secretas ficavam no mesmo andar das masmorras, e Quaere as encontrou facilmente. Entrou e trancou a porta, pois aquele era o lugar para avaliar os objetos proibidos, e para isso tinha a rara permissão de usar a luz. Acendeu uma vela e o pequeno quarto se iluminou. Os olhos de Quaere doeram por causa da luz que não via há tanto tempo em tamanha intensidade. Demorou muito tempo para se acostumar, mas então, mesmo que não quisesse admitir, deliciou-se com a sensação. O quarto era feio e pequeno; com paredes de terra e com nada mais que uma mesa torta no centro do aposento cheio de velas e isqueiros rústicos. Mesmo assim, ver era uma sensação boa.
Sem perder muito tempo, Quaere foi até a mesa e pousou ali o livro. Ele era interessante, com uma capa feita de folha seca e páginas de seda.
"Milien e Gardien" estava escrito na capa. Quaere abriu o livro e começou a ler, e antes que percebesse estava se perdendo nas páginas.
O livro falava sobre dois vagus, um homem e uma mulher, que se apaixonaram e fizeram de tudo para ficar juntos apesar das dificuldades que encontraram. Mas o que mais chamou a atenção de Quaere foi a descrição do lugar onde Milien e Gardien moravam. Era chamado Valesperança, e quanto mais o capitão lia, mais ficava claro que aquele era o mesmo Valescuro. Ali estava descrito um belo palácio feito das pedras polidas do rio; praças feitas em cerâmica polida com fontes de água corrente e das ruas cheias de vida. O livro falava de como a luz fazia o palácio brilhar como se fosse feito de pedras preciosas e de como Milien e Gardien se encontravam sob a luz prateada da lua e sob milhares de estrelas.
Quaere só percebeu o quanto perdera a noção de tempo quando a vela se apagou, antes que terminasse de ler o livro. Ficou com medo no mesmo momento, pois demorara demais naquele lugar. Alguém poderia reportar isso à Jornala, a tarântula que era a chefe da guarda-real. Guardou o livro naquela mesma sala e saiu, voltando até as masmorras.
— Terminarei de avaliar o material amanhã - disse Quaere ao patrulheiro que o esperava junto à cela.
— E quanto a eles? - perguntou o patrulheiro.
— Deixe-os aí. Quando eu terminar de avaliar o livro poderemos prosseguir com a punição.
Quaere deixou as masmorras, subindo as escadas e voltando ao interior do palácio. Manteve-se em serviço por mais algumas horas, até que chegou a hora da troca de turnos e outro capitão chegou para rendê-lo. Quaere subiu as escadas da Torre dos Oficiais e entrou em seus aposentos. Exausto pelo noite de trabalho, deitou-se na cama para um descanso merecido, mas foram precisas muitas horas para que conseguisse dormir, pois sua mente estava no palácio que brilhava como pedras preciosas, nas praças de águas correntes e no pequeno ponto luminoso que vira no céu. O capitão finalmente conseguiu dormir, sem saber que aquele seria o primeiro dia de muitos que mudariam sua vida para sempre.
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Em Busca Da Luz
Short StoryOs insetos de Valescuro são mantidos sob o comando da Rainha Sombria, mas quando uma nova luz surge na cidade, tudo irá mudar.